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publicado dia 22 de novembro de 2012

O Julgamento e as Masmorras Modernas

A referência dos ministros à época medieval nos lembra de que o sistema penal, tal como conhecemos, não tem duzentos anos.

Durante encontro com empresários ocorrido esta semana, o ministro da Justiça respondeu a uma pergunta sobre a pena de morte afirmando que morrer seria preferível a viver nas medievais prisões brasileiras. O comentário, embora não seja inverídico nem inédito, soou um tanto desconcertado, já que o governo federal é, em boa parte, responsável por este estado de coisas.

Além disso, é difícil dissociar este comentário do fato de ele ter sido proferido no dia seguinte à imposição pelo Superior Tribunal Federal de pena de prisão de 10 anos e 10 meses em regime fechado ao ex-ministro da Casa Civil, pena esta que levou outro ministro, Dias Toffoli, do próprio STF, a também remeter à Idade Média, comparando-a ao que acontecia na inquisição espanhola do século XV.

A referência dos ministros à época medieval nos lembra que o sistema penal, tal como conhecemos, não tem duzentos anos. Antes dele, a forma predominante de punição era o suplício. Seguindo Foucault, notamos que esta mudança promoveu dois importantes deslocamentos: o julgamento, antes secreto, tornou-se público; em contrapartida, a punição, de pública, passou a ser privada.

Nada mais público do que o julgamento do mensalão, transmitido em cadeia nacional diariamente há meses e depois repercutido exaustivamente na mídia impressa e redes sociais. Já a prisão, de tão fechada e oculta, nunca é priorizada nos debates públicos sobre as políticas de justiça e segurança. Talvez o fato de que, pela primeira vez na história deste país, poderosos estejam sendo condenados à cadeia traga um pouco de luz a esta masmorra moderna.

Este fato inédito só foi possível porque nas últimas décadas, em alguma medida, as forças progressistas – de onde saiu o ministro da Justiça – também foram cooptadas pela lógica penal e passaram a reivindicar a tipificação de novos crimes, como o crime organizado, a lavagem de dinheiro, os atos de improbidade administrativa, o abuso do poder econômico, a corrupção. Estes atos, no entanto, estão intrinsecamente ligados à estrutura de gestão do poder, o que torna virtualmente impossível sua integração com a lógica do Direito Penal, na qual é imprescindível encontrar responsáveis ou culpados pelos acontecimentos.

Muitos afirmam que o julgamento do STF está sendo político, não técnico. Mas, o sistema penal não se sustenta em tecnicalidades, o que remeteria sempre a uma suposta neutralidade e cientificidade na coleta de provas. Desde o início, na investigação, a arbitrariedade e o moralismo estão plenamente presentes.

Entre as obrigações dos policiais federais e civis, cabem investigar, espionar, interrogar, intimar, suspeitar, desconfiar, deduzir, inquirir, ocultar, silenciar, fazer falar, indiciar. São os responsáveis por distinguir os fatos das distorções, atribuir leviandade ou honestidade aos depoimentos. Se ultrapassarmos o nível meramente formal, observamos métodos como tortura, chantagem e ameaça em pleno andamento para obter a confissão, que é a pedra de toque para toda a engrenagem do sistema.

Aos promotores ou ao Procurador, são atribuídas tarefas semelhantes acrescidas do fato de que devem assumir um dos lados. Acusar é sua obrigação, mas como em crimes do tipo organizado acusar muitos atribuindo responsabilidades individuais é tarefa na prática impossível, precisam descobrir os mandantes, selecionar os culpados.

Estando em situação de competição com a Defesa, precisam construir argumentações convincentes e veementes para conquistar a condenação, transformando suspeitos em acusados, indícios em provas, conflitos em crimes, versões em libelos e denúncias. Na busca da veemência, devem encontrar agravantes para o crime, atribuir qualificativos, determinar seus motivos. O objetivo é conseguir a pena máxima, quanto maior a pena conquistada, maior terá sido sua vitória.

Aos defensores cabe desconstruir as acusações e denúncias, desabonando as provas, desacreditando as testemunhas e mesmo os encarregados da investigação, a fim de inverter as posições entre suspeitos e inocentes. Quando consideram difícil negar as provas, os defensores devem buscar atenuantes para a conduta, definindo outros motivos. Ao invés de compra de votos, desvios para pagamentos de dívidas de campanha, por exemplo.

O juiz decide quem será o vencedor da disputa: se a Acusação ou a Defesa. Para isso, seleciona qual versão será transformada em fato, escolhe os qualificativos que melhor definem os motivos que levaram ao crime e emite uma sentença. Se condenatória, a sentença traduzirá a gravidade do crime cometido em valor a ser pago por multa ou número de anos que o condenado deverá ficar na prisão. A dosimetria que se tornou palavra comum no vocabulário brasileiro hoje.

No caso do STF, como são muitos os juízes, os debates por vezes inflamados evidenciaram que esta escolha sobre qual será o vencedor da disputa é muito menos técnica do que se almeja. Ao serem incumbidos de determinar culpados e inocentes, os juízes são alçados a uma posição nem técnica nem política, mas sim divina.

É na prisão que a condenação da alma se torna uma função burocratizada, paga pelo contribuinte, exercida por funcionários públicos. Desde a entrada no sistema, quando os novos presos passam por um rígido processo de despersonalização, iniciam o aprendizado sobre a nova vida com ameaças veladas e são distribuídos pelos pavilhões de modo bem administrado para garantir a dominação de muitos por poucos.

A partir daí, entram em ação as estratégias para formar e manter uma complexa rede de intrigas, propinas, desvios que, ao lado da repressão violenta, garantirão a ordem em um contexto de superpopulação, precariedade das condições físicas e sociais, escassez de alimentos e de vestuário e disseminação de epidemias e conflitos violentos. Não é novidade que nasceu nas prisões o Primeiro Comando da Capital paulista, o PCC, que nos últimos meses tem disputado as manchetes com o mensalão em decorrência dos confrontos letais que vem travando com a polícia de São Paulo.

A prisão como ela de fato é, não como está descrita nos discursos autistas sobre ressocialização, mantém no século XXI o papel desempenhado pelos castigos corporais até duzentos anos atrás: o de causar sofrimento aos condenados, de aplacar o desejo de vingança das vítimas, sejam as vítimas de criminosos violentos, sejam as vítimas de poderosos gananciosos e inescrupulosos.

Os desconcertos provocados pela inédita prisão de poderosos estão finalmente trazendo este debate à luz. Tomara que as forças progressistas agora consigam superar a lógica penal e propor formas efetivamente novas e democráticas de lidar com os conflitos sociais.

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