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publicado dia 5 de dezembro de 2013

O memorável caso de Sabrina Bittencourt

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O escritor argentino José Luís Borges criou Irineo Funes, o memorioso, e nos permitiu vislumbrar o que seria uma pessoa sem imaginação. Funes era incapaz de esquecer qualquer coisa que visse. Sua memória era um inventário eterno de tudo, não havia detalhe que não fosse registrado, guardado, etiquetado. Não havia o que não fosse igual e novo. Dizia ele: “Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. Meus sonhos são como a vossa vigília. Minha memória, senhor, é como depósito de lixo”, ao que o narrador advertia: “Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.”

Mas nem sempre precisamos recorrer aos livros para encontrar casos que desafiam nossa imaginação e revelam fragmentos de nossa época. Esse é o caso de Sabrina Bittencourt, que se auto-define como empreendedora social em série, agricultora de ideias, futura ciborgue e mãe.

Como Funes, que aos 19 anos sofreu um acidente, Sabrina, hoje com 32, perdeu 11 anos de sua memória em julho deste ano, enquanto alimentava seus três filhos: Gabriel, 11, Raquel, 5 e Davi, 3. Em um tempo marcado pelo excesso de informação, que aproxima nossa cognição daquela descrita para o personagem de Borges, e nos impõe uma biblioteca de Babel extensa e muita vezes inútil, Sabrina esqueceu.

Escola alada

A família educadora.

Quando tinha 8 anos, Biel, seu filho mais velho, contou à mãe que gostaria de sair da escola: “Não vou conseguir realizar meu sonho de levar alimentação saudável para as crianças de todo o mundo de lá de dentro. Não posso esperar virar médico para conseguir ajudar as pessoas”. Mãe e filho, então, começaram a explorar possibilidades de aprendizado mútuo fora do ambiente consagrado para isso. O nomadismo da família, que vive entre São Paulo, Barcelona ou qualquer lugar onde consigam arrumar uma casa, de Indaiatuba à Londres, teve um feliz encontro com a opção da desescolarização.

“Existe muita gente, principalmente nos Estados Unidos, que faz ensino domiciliar por ter uma perspectiva religiosa. Já na Europa, onde encontramos mais de duas mil famílias que nos ajudaram a pensar em nosso processo, quem tira os filhos da escola geralmente visa questionar o sistema, o governo, a formação padronizada, em série”, revela Sabrina durante uma pausa nas atividades da Conferência Nacional de Alternativas Para Uma Nova Educação (CONANE), ocorrida no final de novembro, em Brasília.

Minutos antes, Sabrina havia subido ao palco pela primeira vez desde o episódio da amnésia para falar sobre a Escola com Asas: o processo de desescolarização que empreendeu com seus filhos e cujo “CEO” é seu filho Davi, de três anos. O projeto, disponível na internet, pretende criar um ambiente virtual com famílias interessadas em participar, que podem usar o material como apoio inclusive para crianças escolarizadas. O primeiro passo do método, aberto e mutável, como ela frisa, é mapear os sonhos da criança e entender a individualidade dos filhos como distinta da dos pais.

Partindo dos quatro elementos, é elaborado um plano que visa construir estruturas colaborativas para o aprendizado, que deve ocorrer de dentro para fora, do micro ao macro. Começam estudando alimentação, procurando alternativas orgânicas e estudando processos produtivos. Depois trabalham o corpo, fisiologia e elementos da biologia.  Na próxima etapa, a proposta é tentar compreender a cidade. Da cidade, o projeto vai para o mundo e sua história.

Cada estudante é incentivado a criar seu próprio uniforme disforme, com cores e desenhos próprios, e a entender as cadeias de produção envolvidas na confecção da roupa, além dos suportes artísticos utilizados. Disso, partem para a cultura local, internacional e cidadania. Ao fim dessa espiral, os jovens devem criar um projeto social que contemple o que acumularam ao longo do ano, cooperativamente.

“A gente estimula esses aspectos pois eles são ensinados desde cedo a competir. Mas na verdade cada pessoa depende do outro”, pontua Sabrina, que também ressalta a importância dos pais não fingirem que sabem tudo. “Queremos despertar essa honestidade de falar para o filho: ‘eu não sei, vamos pesquisar’. É uma relação transparente, não hierarquizada da mãe-toda-poderosa-que-sabe-tudo. Queremos ajudar no caminho, mas é ele quem precisa descobri-lo.”

Pouco antes de terminar sua exposição, Sabrina revelou a verdadeira força dessas palavras. “Quando eu perdi onze anos da minha memória, o Biel disse: ‘Não tem problema, mãe. Assim como você me ensinou a pesquisar, eu te ajudo a encontrar o que tá aí dentro. Você não esqueceu’.”

Olvido

Após a palestra e conversa com os participantes do encontro, Sabrina entrou em uma sala para ser entrevistada por jovens estrangeiros que estão no Brasil à procura de experiências de educação alternativa. O cabelo preto raspado nos lados balançava de um lado para o outro em meio às efusivas palavras, gestos e calorosas risadas, interrompidas apenas por surreais lapsos de memória. Desconfiava de si mesma com frequência e levava as mãos com unhas vermelhas ao rosto. “Eu gostava de unha pintada quando era mais jovem, mas me disseram que eu não gosto mais agora aos 32. E estou vendo que não faz mais sentido para mim”, ponderou, fitando os dedos. Divagações de uma mulher que voltou no tempo, de si e do mundo, em uma mini-expedição da última década.

Em julho, Sabrina foi arremessada no ano de 2002, quando o primogênito Biel ainda tinha 5 meses. Assustada, não entendeu nada. Não reconhecia marido, filhos, o mundo e seu rosto no espelho. Durante a internação no hospital, tentava ligar para o ex-marido, pedindo que a tirasse de lá. Mas ele estava no Rio Grande do Sul. Também relata ter sofrido com as violências na instituição psiquiátrica onde esteve internada.

“Eu tinha o cabelo longo aos 20, então achei que tinham raspado meu cabelo numa prisão. Passei duas semanas sem conseguir me olhar no espelho – e todos da casa estavam cobertos. Eu não me reconhecia. Quando me vi, chorei por 20 minutos sem parar. Eu era uma mulher de 21 olhando a si mesma com 32. Chorei de ver que envelheci.”

“A memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evocação de informação adquirida através de experiências; a aquisição de memórias denomina-se aprendizado. As experiências são aqueles pontos intangíveis que chamamos presente. Não há memória sem aprendizado, nem há aprendizado sem experiências.” Ivan Izquierdo

Sabrina não entendia o que eram as pessoas com telas enormes tirando fotos – “não era para tudo ficar menor?” – e achou o Skype incrível, tanto quanto incompreensível um tal de Facebook. “Mas por que as pessoas ficam se mostrando assim, suas vidas, sua intimidade? Não faz sentido. Ridículo isso.” Sua mãe a surpreendia com as respostas: “Você é fanática e tem mais de 2 mil amigos”. Ao deparar-se com uma foto seminua com a família na praia, descobriu ser nudista: “Sua vivência na Europa fez você ficar assim”, revelou novamente a mãe. Ao ver que tinha um laptop, ficou admirada.

Foi, paulatinamente, reconstruindo os pedaços de memória. O vídeo do casamento. Um encontro com amigos de longa data. Os vizinhos de infância que ela, vendada, reconheceu pela voz. “Algumas pessoas eu vejo e fico com taquicardia. Porque eu sei que adoro, mas não consigo me lembrar delas. Mas os cheiros e sons me ajudaram muito. A memória visual se foi. Quando minha vizinha de infância, que eu não via há 20 anos, chegou me chamando de estrelinha sapeca, voltou na hora.“

Ficou dias sem encontrar os filhos. Não conseguia. Gabriel quase chegou a ser matrículado numa escola tradicional pelo pai – o que rapidamente não deu certo. Ele, aos 11, era para ela um bebê, o bebê que ela queria de volta. Algum tempo depois, Raquel então com quatro anos de idade entendeu:

“Você não lembra de mim, né, mãe?”

“Não, filha.”

“Não tem problema, um dia você vai lembrar de mim. Eu vou curar você.”

E todas as noites a menina colocava a mão no ouvido da mãe e recitava um mantra próprio, marcadamente infantil: “Você vai lembrar de mim, você vai lembrar de mim, pimpiririm-pimpim, você vai lembrar de mim”, assim, três vezes pra não esquecer. Até que voltou. Demorou um certo tempo para que ela lembrasse da cor favorita de Raquel, mas a memória foi se aproximando por meio das palavras e das mãos no ouvido. Palavra que soa igualzinho a “olvido”, que em português e espanhol, traduz o ato de esquecer.

Futuro do pretérito

O motivo da amnésia, segundo ela, foi o stress. Sabrina cuidava de 37 startups, empreendimentos sociais e projetos de inovação, além de três filhos quando tudo aconteceu, durante um almoço familiar. Hoje, as memórias aparecem acompanhadas de risos. “Renasci na minha própria vida, é uma sorte. Posso inventar tudo de novo, deixar certas coisas de lado.”

O diagnóstico inicial esperava a recuperação em uma semana. O segundo apontou que seriam necessários anos de trabalho. O processo, no entanto, parece estar galopando.

“O que eu sei, quer dizer, aprendi novamente, é que nossa vida é uma vida intensa. Somos nômades, moramos em muitos lugares. A gente vive muito de trocas entre as pessoas, os nossos empreendimentos são todos sociais, para destinar a renda, ajudar determinadas comunidades, situações de risco social, crianças doentes, com deficiência, mulheres em situação de risco.”

“Não há tempo sem um conceito de memória; não há presente sem um conceito do tempo; não há realidade sem memória e sem uma noção de presente, passado e futuro”. Ivan Izquierdo, Memórias.

Para ela, não importa onde a família esteja: barraca de camping, morando numa favela, casa de intercâmbio ou ecovila. O que importa é que seus filhos tenham oportunidades de vivências variadas para quando quiserem voar sozinhos, tal qual a escola alada, e para que possam fazer suas escolhas, sentindo que fazem parte do mundo.

Gabriel, pequeno voador, já tem seu próprio programa de culinária – o “Arte na Cozinha” – e um noticiário de boas notícias feito para crianças de sua idade. Autodidata, já pode ser visto na internet falando sobre seus projetos. A família agora parte em uma nova aventura com o projeto “Buscamos o Paraíso”, que percorrerá o mundo em busca de alternativas para alimentação saudável, consumo consciente e justiça social. “Queremos mostrar que o paraíso está em toda parte.”

Além disso, Sabrina orgulha-se em ser uma das “primeiras mulheres ciborgue do mundo”. Ela afirma que instalará um chip atrás da orelha que, valendo-se de nanotecnologia e outros artíficios que escapam à imaginação, será capaz de traduzir línguas diversas em tempo real.  O batizado “Diwotongue Cyborg Project” está sendo construído em parceria com Neil Harbisson, artista com acromatopsia – só enxerga em preto e branco –  que construiu um equipamento que permite transformar cores em som, que são transmitidos diretamente para seus ouvidos, transformando a sinestesia em tecnologia. “Vou realizar meu sonho de não ter barreiras para me comunicar. E pretendo que isso seja de patente aberta, em Creative Commons 3.0, para que esteja acessível a toda humanidade”, afirma.

Seja trabalhando com negócios sociais, lutando contra exploração sexual infantil, inovações tecnológicas ou crowdfunding, crowdlearning e qualquer outro verbete incluído em nosso vocabulário com a mesma velocidade com que sai de cena,  Sabrina revela muito sobre nossos tempos. Suas palavras, ações e até seu esquecimento – uma atitude involuntária do corpo diante do que não pode mais absorver, um disco rígido que apagou, levando fotos, músicas, textos e um monte de arquivos que nunca mais serão acessados – são capazes de alterar nossa percepção sobre presente, passado e futuro. Sabrina tornou-se mulher e mãe novamente – um processo de anos num átimo.

Diante de tantas incertezas, uma evidência: se ela soubesse quem é hoje aos 32, jamais teria chorado ao se olhar no espelho aos 21.

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