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publicado dia 29 de maio de 2015

Garantir direitos de crianças e adolescentes é uma tarefa de todo o território

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Um velho ditado, atribuído a diversas origens, diz que para criar uma criança é necessário uma aldeia inteira. Se considerarmos essa aldeia uma de nossas cidades, fica a sensação de que há tempos nos desgarramos dessa tarefa coletiva que é pensar e agir sobre o desenvolvimento integral das pessoas. A organização social de nosso meio urbano criou divisões, especializações, setores e responsabilidades que alheiam-se umas das outras.

Completando 25 anos em 13 de julho deste ano, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, é categórico em afirmar, em seu artigo 4º: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Para o Estatuto, é dever de todos prevenir a “ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”.

A igualdade tem que começar desde cedo.
A igualdade tem que começar desde cedo.

Mas  por que isso é importante? Porque a igualdade tem que começar desde cedo. Pelo menos, é o que defende James Heckmann, economista americano vencedor do Prêmio Nobel no ano 2000. Ao longo de quarenta anos, Heckmann estudou crianças de dois grupos: um grupo que recebia atendimento qualificado e outro em situação de vulnerabilidade. Ao longo do desenvolvimento da vida dessas pessoas, notou que os índices de gravidez na adolescência, os salários e o desempenho cognitivo apresentavam mudanças significativas. “É a partir daí que começa a surgir a grande divisão, fazendo com que a desigualdade se perpetue nas gerações posteriores”, afirmou em visita ao Brasil, em 2009.

Sua pesquisa desmentiu os mitos de que uma pessoa herda habilidades especiais ao nascer e a colocou no campo de potencial a serem desenvolvidos. Ele é o autor da estimativa de custo benefício de que a cada dólar investido na primeira infância – dos 0 a 6 anos – nove voltarão para a sociedade. “Um programa de primeira infância de qualidade para a população carente é uma condição necessária para avançarmos em direção a uma sociedade mais educada, igualitária e, sobretudo, menos violenta”, atesta.

Para Heckmann, ensino não é o único investimento necessário. “Quando se pensa em ensino, pensa-se basicamente sobre QI, em como desenvolvê-lo, e não em se criar caráter, em promover motivação, cidadania, em propiciar que as pessoas se socializem com outras, e se engajem. Enfim, em coisas que têm um papel muito maior em nossa vida. Isso é negligenciado aqui no Brasil e em toda parte. É um problema que os responsáveis pela criação de políticas não encaram”, diagnostica o pesquisador.

Essa visão é coadunada por Gabriela Pluciennik,  coordenadora de projetos da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, que enxerga que a assistência dos primeiros anos de vida irá se disseminar sobre o desenvolvimento integral da criança e terá reflexos na vida futura se ele for promovido desde cedo. “Quando a gente fala em desenvolvimento da criança, falamos na esfera da sua integralidade, nos aspectos cognitivos, emocionais e biológicos, que se interrelacionam e não podem ser tratados de forma isolada, pois a criança é um ser integral, que se relaciona com o seu ambiente e todas suas facetas”, analisa.

Assim, para fortalecer o desenvolvimento de todos, com igualdade, é essencial a garantia dos direitos da criança e do adolescente de forma integral. O ECA também chega a prever que haja uma descentralização das políticas de atendimento, saúde, prevenção de maus-tratos e trabalho infantil e demais serviços de proteção ao indivíduo em desenvolvimento. Mas estamos cumprindo esses preceitos?

Uma rápida olhada ao redor mostra que não. O ECA é mais lembrado para questionar direitos, em épocas de ameaças de redução da maioridade penal, do que para garantí-los como sociedade. Porém, existem casos de educadores, conselheiros tutelares, defensores, promotores, além de organizações da sociedade civil, que tomaram para si a tarefa de efetivar o ECA e buscar, de maneira interessetorial, novas soluções para velhos problemas, ligando a escola com os demais equipamentos públicos e o sistema de garantia.

 

O Sistema de Garantia dos Direitos

O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) consolidou-se a partir da Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) de 2006. Ele é formado pela integração e a articulação entre o Estado, as famílias e a sociedade civil como um todo, para garantir que a lei seja cumprida, que as conquistas do ECA e da Constituição de 1988 (no seu Artigo 227) não sejam letra morta. Leia na página do Promenino.

 

Peteca

O procurador-chefe da Procuradoria Regional do Trabalho no Ceará, Antonio de Oliveira Lima, criou em 2008 o Peteca, mistura de Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) com ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), que integra o “Projeto MPT na Escola: de mãos dadas contra o trabalho infantil”, uma iniciativa nacional de combate ao trabalho infantil.

No programa, os professores recebem uma formação sobre o tema e são incentivados a criar planos de ação em escolas em áreas de vulnerabilidade, motivando os estudantes a desenvolverem projetos temáticos sobre o trabalho infantil. Na EMEF Nilo Torres, em Beberibe (CE), uma das primeiras cidades a adotar o Peteca – que já se espalhou por todo o país -, o diretor se orgulha em dizer que hoje “dos nossos 260 alunos, todos apenas estudam”.

“Uma criança em situação de trabalho precisa de um acompanhamento muito maior. Na escola, ela tem três vezes mais chance de evadir. As condições laborais, muitas vezes insalubres, causam problemas de saúde. A assistência social precisa estar atenta à família, que também deve ser aconselhada para ver que o trabalho infantil não é natural, não ajuda o jovem e precisa ser combatido. Para enfrentar violações de direitos, é preciso de uma rede inteira, atuando junto”, avalia Lima.

O procurador-geral evoca a imagem de uma aldeia, que coloca a criança no centro da roda para protegê-la, como símbolo do trabalho em rede. “A violação acontece em vários campos e os responsáveis por remediar isso têm que se comunicar, olhar essa criança em todas suas dimensões e complexidades, ligando lazer, cultura, esporte, saúde, assistência e educação”, afirma Lima. “Para mudar a mentalidade e romper essas barreiras, precisamos trabalhar com a comunidade inteira: e isso pode começar com a comunidade escolar, chamando os pais e trocando saberes com eles”, completa.

Para exemplificar esse protagonismo, Lima lembra da cidade de Tianguá, no Ceará. Em 2013, foram encontradas 1.344 crianças em situação de trabalho. “Nós começamos uma articulação em rede e, um ano depois, 319 delas já não estavam mais em situação. Os educadores não estavam ligados nisso, a sociedade achava que era problema da assistência social. Agora, vemos como um problema de todos. Esse é o grande passo do projeto. Dizer que é da nossa conta, que diz respeito à nós garantir a dignidade e a cidadania dos mais vulneráveis”, conclui o procurador.

Pintura da aluna Helane, da EMEF Germano José do Nascimento, em Beberibe (CE), 1º lugar do Prêmio Peteca 2012
Pintura da aluna Helane, da EMEF Germano José do Nascimento, em Beberibe (CE), 1º lugar do Prêmio Peteca 2012

De aconselhado a conselheiro

A importância deste tipo trabalho – e do combate às violações de direitos – pode ser vista na trajetória de Antonio Leonardo Duarte Pereira, ou Léo, que hoje é Conselheiro Tutelar em São Bernardo do Campo (SP). Nascido em Juazeiro do Norte, no Ceará, ainda menino largou a escola para ajudar com trabalhos informais na renda da família. Ao migrar para São Bernardo, aos 12 anos, sem uma rede de apoio e diante da indiferença da cidade grande, acabou indo morar na rua, sobrevivendo de pequenos mascates.

Foi na rua que conheceu o Projeto Meninos e Meninas de Rua (PMMR), que, através de oficinas, esportes e cultura, aproximava e amparava jovens em vulnerabilidade e os incentivava a ter uma voz e uma participação política que sempre lhes foi negada. “Falava aos meus amigos: hoje nós somos atendidos, mas amanhã poderemos atender”.

As projeções do jovem Léo se tornaram realidade. Hoje ele trabalha com pessoas que passam pelas mesmas dificuldades que um dia enfrentou. “Quando eu estava em situação de rua, tive a oportunidade de ser atendido por uma organização que trabalhava de forma política seus atendidos e isso me fez enxergar meu papel comunitário.”

“A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.”

– Artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Hoje, Léo atua na articulação de movimentos sociais em defesa dos direitos humanos com o conselho tutelar, fiscalizando instituições de atendimento e buscando articulações, além de atender a comunidade. “A dimensão geográfica da cidade prejudica nossa presença na comunidade. O Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) prevê um Conselho para cada 100 mil habitantes. Mas aqui em São Bernardo do Campo, nós temos 800 mil habitantes e apenas três conselhos”, lamenta Léo, ao ressaltar a importância da comunidade e dos movimentos sociais na garantia de direitos.

“A gente acaba agindo de acordo com as demandas”, problematiza, “e quem é mais ágil e menos burocrático nesses enfrentamentos e denúncias são os movimentos sociais, associações comunitárias, que trazem ao poder público as violações no território e pautam soluções. Até porque, muitas vezes, quem viola direitos é o Estado”, denuncia. Ainda assim, ele enxerga que nesse processo todos os atores são fundamentais.

“Os professores que estão no dia a dia com as crianças, os agentes de saúde, as famílias, quem está ali com as crianças no cotidiano, assim como a associações comunitárias, são imprescindíveis para se pensar um sistema de garantia de direitos”, afirma Léo.

Rede Intersetorial

Nas bordas da zona oeste paulistana, no Jardim Boa Vista, uma parceria entre a Unidade Básica de Saúde (UBS), as escolas da região, comunidades e movimentos sociais tem mudado a realidade local. Essa “microrede”, lembrada por João Kleber Santana, diretor da efetivo da EMEF Ileusa Caetano da Silva, em exercício na Diretoria Regional de Ensino do Butantã, como inspiração, conseguiu diminuir os índices de dengue, de violência e desempenho, comparado a outras escolas semelhantes, trabalhando de maneira articulada. Além disso, motivou a formação de uma outra Rede Intersetorial, que envolve diversas secretarias, a Diretoria Regional de Ensino do Butantã, a assistência social e diversas escolas e Centros Educacionais Unificados (CEUs).

Para Santana, o importante é que os diferentes agentes do território falem a mesma a língua. “Trabalhamos – saúde, educação e assistência social – com os mesmos jovens, com as mesmas pessoas. Uma rede possibilita um trabalho integrado, potencializa e permite um mapeamento mais completo dos problemas, não visando o que falta, mas aquilo que é possível desenvolver”, afirma.

“Um território articulado é um território preparado”

Ele defende ainda a necessidade de superar a lógica do encaminhamento, criando uma noção efetiva de atendimento e prevenção. “Onde isso acontece, a criança começa a ser atendida conjuntamente pela unidade básica e pela escola desde a educação infantil. É uma forma de otimizar o trabalho dos servidores naquele território e uma concepção que prevê a gestão com liderança local, um atendimento racional, sensível e humanizado.”

A fragmentação também é vista como um desafio a ser superado, de forma a “resgatar o sentido comunitário do serviço público”. Uma ferramenta que pode ser de grande auxílio, acredita Santana, é o mapeamento do território. “Convidamos diversos atores para um mapeamento do território, que colete dados e nos permita agir diante de cada crise. Um território articulado é um território preparado.”.

Desafios

Apesar das grandes vicissitudes do trabalho em conjunto, Santana pondera que, muitas vezes, não faz parte da cultura e da estrutura do serviço público esse tipo de unidade. Para o educador, é necessário que essas ações sejam vistas como rotina laboral do servidor.

“Não é parte da tradição do serviço público a intersetorialidade. O paradigma é o do ‘cada um no seu quadrado’. Não havia locais para que nossas reuniões acontecessem, não havia uma rotina da escola para que a direção e os professores participassem, na unidade de saúde e nos serviços da assistência social, é como se esse trabalho fosse oculto”, lamenta o diretor.

Para Pluciennik, da Fundação Maria Cecília Soto Vidigal, o Brasil tem boas políticas públicas, mas falta um olhar horizontal e articulado entre as diferentes culturas organizacionais. “É um desafio para qualquer um trabalhar assim, unindo áreas distintas do conhecimento. Cada vez que um programa é estruturado assim, já é uma conquista. Um programa que se articule integralmente, tem mais chance de pensar no desenvolvimento integral de seu público alvo”, conclui.

 

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