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publicado dia 29 de junho de 2017

Histórias invisíveis ganham vida em obra de Luiz Eduardo Soares

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Mariana sobe o morro, dirigindo-se à associação de moradores em busca de ajuda para identificação de algumas famílias, e aproveita a caminhada para exercitar, o que, no âmbito do projeto, é chamado de “busca ativa”. Enquanto caminha, observa o cenário, o tumulto das vozes e mototáxis acelerando, ambulantes descendo para mais um turno no asfalto. Lixo e esgoto sem tratamento drenando a saúde de tanta gente. A beleza do Rio derrotada. Como o radar está sempre ligado, ela percebe um menino que se destaca porque está só, parado, maltrapilho. Ele é magro e está sujo. Mariana se aproxima, mas é a criança que a aborda primeiro. Quer saber o que a tia faz, por que está ali. Mariana diz que está ali para ajudar crianças a entrar na escola. Pergunta-lhe o nome e prossegue:

 Onde está a sua mãe?
O menino cala-se.
Onde você mora?
Eu não moro, ele diz.
Como assim? Onde é sua casa?
Aqui.
Aqui, onde? Qual é a sua casa?
Aqui mesmo. Não tenho casa.
Mariana indaga pela mãe.
Está por aí, ele diz.
Como, por aí? Por aí, onde?
Lá embaixo. Deve estar na rua, embaixo da favela.
A criança tem nove anos.
E sua família?
Não tenho ninguém, não, ele explica.
Seu pai?
Ele abaixa a cabeça.
Não tem vó, tia, tio?
Não.
E a escola?
Não tenho escola, não, tia.

“Vidas Presentes” narra as histórias de 15 articuladores e articuladoras do projeto Aluno Presente, iniciativa da Associação Cidade Escola Aprendiz, realizada com apoio da Fundação Education Above All e parceria da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, de combate à evasão escolar na capital do estado.

Parte do grupo de 70 profissionais que passou três anos percorrendo, de porta em porta, 161 bairros e 855 favelas do Rio em busca das mais de 20 mil crianças que estão fora da escola, esses articuladores tiveram suas histórias transformadas em relatos literários pelo escritor e antropólogo Luiz Eduardo Soares.

Entre os anos de 2013 e 2016, 70 articuladores localizaram, no município do Rio de Janeiro, 23.753 crianças de seis a 14 anos fora da escola. Dessas, 22.131 foram inseridas ou reinseridas nas escolas.

Com lançamento previsto para esta quarta-feira, às 18h, no Rio de Janeiro, Vidas Presentes é um mergulho empático em uma realidade invisibilizada pela fantasia da Cidade Maravilhosa. Ou, como define o próprio autor, “traz para perto do coração selvagem, daquilo que está em nós e não pode ser dito.”

Entrevistado pelo Portal Aprendiz, Luiz Eduardo Soares, que também é autor do renomado Elite da Tropa, espera que a leitura ajude a compreender o complexo quadro social no qual se encontram crianças e famílias cariocas e mobilize ativistas sociais e o poder público a se responsabilizar por sua transformação. “É uma leitura que clama por mais engajamento e dedicação, porque o que fazemos ainda se mostra insuficiente”, alerta o escritor.

 Confira a entrevista completa e baixe o primeiro capítulo do livro “Vidas Presentes”:

Portal Aprendiz: Qual seu envolvimento com o projeto Aluno Presente e como surgiu o convite para escrever o livro?

 Luiz Eduardo Soares: O Projeto Aluno Presente é fantástico, acho que nunca participei de um projeto oriundo da sociedade civil com essa ambição e com tanto sucesso prático, não só analítico e reflexivo. Eu acompanhava esse trabalho através da Miriam Krenzinger e da Eliana Souza e Silva, além de várias outras pessoas que ajudaram a conduzir o trabalho no Rio de Janeiro, e a Miriam me consultou sobre a possibilidade de escrever algumas narrativas que contemplassem algumas das experiências que decorreram do trabalho de campo. Isso porque as análises finais acabam sendo mais frias e com uma capacidade diferente de comunicação.  Elas cumprem uma tarefa indispensável, mas mas não o suficiente. Talvez essas narrativas trouxessem para mais perto do leitor a riqueza do drama social envolvido, o que eu achei uma ótima ideia e um grande desafio.

Aguardei o levantamento que a Miriam fez das experiências todas, foi ela que entrevistou as articuladoras e articuladores de campo e que reuniu esse material riquíssimo, meu papel foi selecionar os relatos que fossem mais representativos. Não no sentido estatístico, mas no sentido humano e social, que pudessem expressar os tipos mais extremos e exemplificativos dos confins do Rio de Janeiro.

 Aprendiz: E quais as suas impressões?

Luiz Eduardo Soares: Confirmei a minha própria impressão de que a tragédia social e humana  é maior do que podemos imaginar e conceber, por mais que nós saibamos das desigualdades profundas da nossa sociedade e de alguns casos alarmantes. Quando mergulhamos na vida familiar de crianças, nos deparamos com realidades que vão além do crível. São pessoas tão próximas de nós, nossos vizinhos. São relatos impressionantes e que dão visibilidade a situações extremas que escapam do nosso radar cotidiano e permanecem invisíveis, mesmo para nós que pesquisamos questões sociais.

O grande mérito do trabalho está nas articuladoras e articuladores de campo, porque foram eles que agiram como profissionais e, mais do que isso, tiveram capacidade de dialogar com as crianças, inclusive arriscando a vida em situações perigosas. Foram os articuladores e articuladoras que conseguiram identificar as crianças e levar pra escola, restabelecer o laço social, meu papel foi registrar isso. Busquei fazê-lo em uma linguagem literária, em uma narrativa que não inventa realidade nenhuma, mas em cuja maneira de relatar torna esses fenômenos vivenciados mais compreensíveis e acessíveis a nossa sensibilidade.

 

 Aprendiz: Quem você gostaria que lesse esse livro?

Luiz Eduardo Soares: As pessoas que estão mais distantes, fantasiando o Rio como Cidade Maravilhosa, iludidos com a imagem liberal de que a meritocracia  deve ser nossa referência e critério de valor para julgar as trajetórias sociais.

Acho que essas pessoas levariam um choque com a leitura se tiverem um mínimo de empatia. O ponto de partida é tão díspar, tão desigual, não apenas no grau de acesso e consumo e benefício de políticas públicas, mas mais do que isso:  é um abismo quase intransponível.  Os relatos mostram a injustiça, a iniquidade em seu sentido mais radical e evidenciam como uma visão individualista e meritocrática é desprovida de qualquer sentido e legitimidade. Mas é claro que quem eu gostaria que lesse dificilmente vai ter interesse em fazê-lo.

 Aprendiz: Qual história mais te marcou?

Luiz Eduardo Soares: Muitas histórias foram devastadoras, emocionantes e chocantes, mas a primeira que eu ouvi me convenceu de que poderia ser um trabalho realmente importante. É a história que abre o livro (“Cajueiro”, disponibilizada ao fim da entrevista). É muito impressionante, muito muito triste, e era preciso condensar e escrever de forma sintética, mas o fundamental está ali. É uma histórica com todos os elementos, espécies de ‘sub universos’ que simbolizam todos aqueles universos: distribuição do poder, facções do tráfico, milícia, a criança sem casa, sem lugar, sem endereço, uma mãe que não está consciente da situação do filho e tão distante da vida do filho quanto de sua própria. É uma criança salva pela generosidade da madrinha.

 

 Aprendiz: Qual é o tom dessas histórias? É negativo por conta da vulnerabilidade social ou positivo, de esperança?

Luiz Eduardo Soares: Temos os dois lados da moeda. O livro escancara a radicalidade da iniquidade, da desigualdade, e por outro lado traz a revelação de que não é muito difícil reparar no sofrimento, restaurar o laço e recomeçar a vida a despeito de tudo. O trabalho das articuladoras e articuladores e o êxito do projeto mostram que é possível. Foi um projeto feito pela sociedade civil, ainda que com muitas parcerias, inclusive do poder público, mas foi conduzido pelo poder civil. Imagine o que poderíamos alcançar se o Estado abraçasse: a ideia do projeto é criar um mecanismo, uma ação social que possa se converter em política pública, porque ele se mostrou muito eficiente. Tanto que a metodologia é disponibilizada ao Estado. Isso aponta para possibilidades de recuperação e transformação, mas que dependem, é claro, do envolvimento do poder público.

Mas há um outro lado, que é um certo brilho, uma cintilação positiva porque percebemos que há caminhos. A realidade pode ser transformada, há iniciativas coletivas – , que envolvem inteligência e articulação – , mas que têm esse poder.

 Aprendiz: Que mensagem você deixa após ter conhecido o projeto e se aprofundado nesses relatos?

Luiz Eduardo Soares: Creio que, para o projeto,  existem dois livros interdependentes e complementares: o relatório com análises e dados e esse livro. O relatório permite que a gente compreenda o que foi feito e as possibilidades que existem, ao passo que o Vidas Presentes traz para perto do coração selvagem, daquilo que está em nós e não pode ser dito. Há a reflexão racional organizada e a vivência sensível, a experiência que pode suscitar em cada um de nós  o sentido de responsabilidade de esperança.

Acho que o livro vai impactar tanto quanto provavelmente impactou o projeto os que o vivenciaram na ponta. Para qualquer pessoa sensível, ainda que isso seja uma generalização, a experiência é um impacto doloroso,  mas que alarga a nossa percepção do quadro social que nos envolve. E nos desafia, porque nós, envolvidos em ativismo social, ainda nos sentimos corresponsáveis por esse abismo social e ainda insuficientemente comprometidos com sua transformação. É uma leitura que clama por mais engajamento e dedicação, porque o que fazemos ainda se mostra insuficiente.

Acesse aqui o primeiro capítulo do livro Vidas Presentes.

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