Perfil no Facebook Perfil no Instagram Perfil no Twitter Perfil no Youtube

publicado dia 28 de julho de 2017

Epidemia de zika no Brasil é sintoma de urbanização precária e descaso público

por

O Estado brasileiro falha na assistência às famílias afetadas pela epidemia de zika, além de não combater as causas que a originou. Trata-se apenas de uma questão de tempo para o País ser atingido por uma nova epidemia. Essa é a conclusão do relatório Esquecidas e Desprotegidas: o impacto do vírus zika nas meninas e mulheres do Nordeste do Brasil, produzido pela Human Rights Watch (HRW) e divulgado no começo de julho.

Em seu diagnóstico, a organização mostra-se preocupada com o abandono das famílias afetadas pelo vírus agora que este está longe dos holofotes. O receio converge com as falhas apontadas por diversos especialistas e ativistas na resposta brasileira para a complexa epidemia, que tem raízes muito mais sociais.

O zika não é a primeira epidemia a assolar o País e, segundo o relatório, não será a última. Isso mostra que há um inimigo maior para além do mosquito aedes aegypti. No Brasil, as regiões mais atingidas são justamente aquelas com serviços mais precários, com graves problemas de acesso a água e saneamento básico, bem como a serviços de saúde, educação e informação.

Soma-se a esse quadro a síndrome congênita do zika, uma consequência inesperada da epidemia, para formar o cenário desolador das regiões mais pobres do Nordeste brasileiro.

O vírus zika foi identificado pela primeira vez entre macacos, na floresta Zika, em Uganda, no ano de 1947. Só cinco anos depois foram notificados os primeiros casos em humanos. Ninguém sabe ao certo como o vírus chegou ao Brasil, mas o País registrou o primeiro caso em 29 de março de 2015 e declarou emergência de saúde pública em novembro do mesmo ano.

Às vésperas das Olimpíadas do Rio, em 2016, a epidemia vivia sua fase mais crítica e preocupava o mundo inteiro, especialmente devido à descoberta da transmissão de mãe para filho e ao aumento dos casos de microcefalia. O surto foi classificado como emergência de saúde global pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em fevereiro de 2016, permanecendo quase um ano com esse status. Até o momento, a OMS registra casos autóctones (ou seja, contraídos no próprio local) em 84 países.

Problemas de urbanização

Um dos principais fatores por trás de epidemias não só de zika, mas de outras doenças, é a falta de saneamento básico, isto é, de acesso e tratamento das redes de água e esgoto, um problema histórico no Brasil. Estatísticas da OMS apontam que 35 milhões de pessoas no País não possuem saneamento adequado e 3,8 milhões não têm acesso a água potável. O Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS 2015) estima que 100 milhões de brasileiros estão sem acesso à coleta de esgoto. Com a ausência desses serviços básicos, cria-se o ambiente perfeito para a proliferação do aedes aegypti, mosquito transmissor de doenças como dengue, zika e chikungunya.

“A intensidade com que a epidemia de zika atingiu o Brasil deve-se a vários fatores, entre eles a falta de saneamento. Embora o governo tenha o discurso de não acumular água parada, é muito difícil fazer isso se não há água em casa todo dia”, diz João Bieber, pesquisador da Human Rights Watch e um dos responsáveis pelo relatório, que aponta também a necessidade de fortalecer os serviços de saúde, especialmente a reprodutiva e de planejamento familiar, além do acesso à informação.

Pesquisador do Departamento de Saúde Coletiva da Fiocruz de Pernambuco, André Monteiro lembra que o Brasil tem uma história instável em relação a investimentos no saneamento básico, com períodos de expansão, estagnação e até retração. “Levar saneamento, de fato, é caro, mas existem tarifas para dar conta disso”, diz o pesquisador. “Água e esgotamento sanitário são serviços absolutamente necessários à condição humana. No Brasil, quem não tem saneamento são, basicamente, os pobres e aqueles que vivem em área de urbanização precária”.

Monteiro aponta ainda que saneamento, além de uma questão de saúde pública, relaciona-se aos direitos humanos e à questão ambiental. “Não atuamos em cima das condições que produzem essas tragédias e focamos em não acumular água nas tampinhas ao invés de sanear a região. As pessoas têm direito de viver em condições dignas de urbanização”, critica.

Em março de 2016, o relator especial das Nações Unidas para o direito humano à água e ao saneamento, Leo Heller, afirmou: “Há um forte vínculo entre sistemas de saneamento deficientes e o surto atual do vírus zika, bem como da dengue, febre amarela e chikungunya, sendo todos eles transmitidos por mosquitos”. Heller acrescentou ainda que “a maneira mais efetiva de enfrentar esse problema é melhorar esses serviços”.

Uma das maiores críticas feitas à resposta brasileira para o combate ao zika está justamente no foco dado ao extermínio do aedes aegypti a nível doméstico, ignorando os problemas estruturais de saneamento básico. Foi essa abordagem que levou o relatório da Human Rights Watch a classificar a epidemia brasileira como uma “tragédia anunciada”.

“Anos de surtos de dengue deveriam ter deixado mais que claro que as condições de água e saneamento são perigosas e requerem atenção e investimento, mesmo considerando outras prioridades concorrentes”, diz o relatório, que visitou regiões de Pernambuco e Paraíba, alguns dos estados mais afetados pelo zika. “O acesso intermitente à água deixa as pessoas sem escolha, salvo encher tanques e outros recipientes com água para uso doméstico, que podem se tornar involuntariamente focos potenciais de proliferação de mosquitos se forem deixados descobertos e sem tratamento.”

Campanhas do governo federal focaram no combate doméstico ao mosquito
Campanhas do governo federal focaram no combate doméstico ao mosquito

Para o pesquisador da Fiocruz Pernambuco, as campanhas governamentais são perversas ao culpabilizar pessoas historicamente desprovidas dos serviços básicos pela proliferação do mosquito. “E o Estado, que tem políticas absolutamente ineficazes, fica como se não tivesse culpa”, diz André Monteiro.

Para Leo Heller, relator especial das Nações Unidas para o direito humano à água e ao saneamento, o governo deve ser o principal responsável pelos investimentos em saneamento básico. Por isso, vê com preocupação a atual proposta de privatização de companhias do setor. “Seria uma mudança muito radical, sem haver evidências de que é o melhor modelo, fora que a regulação no Brasil é muito frágil e de orientação econômica ao invés de social, o que pode ter consequências graves.”

 

O temor do especialista é que não haja investimento e expansão nas áreas mais pobres, que podem não ser atraentes para as empresas. “O padrão de coleta de resíduos no Brasil é muito discriminatório. Tem mais acesso quem já vive em áreas urbanizadas, falta levar o serviço para as periferias de grande cidades, para as cidades pequenas, comunidades rurais, indígenas e quilombolas”, defende.

Em 2016, foram registrados 191.992 casos de zika no País, com as maiores incidências em Mato Grosso, Rio de Janeiro, Bahia e Alagoas. Em 2017, até 13 de maio, haviam sido registrados 9.351 casos, 95,1% a menos do que no ano anterior.  Mas quando falamos dos recém-nascidos e crianças com alterações no crescimento e desenvolvimento associadas à síndrome congênita do zika, os estados do Nordeste ganham a dianteira: a região sozinha concentra 47,4% dos 1777 casos suspeitos até maio de 2017, com 90 casos confirmados até o momento.

João Bieber, pesquisador da HRW, resume a situação: “É como se fosse algo cíclico: os problemas de direitos humanos explicam a epidemia de zika, mas a epidemia também exacerba esses problemas já existentes.”

O sofrimento tem gênero

O que parecia ser apenas mais uma epidemia tropical do tipo que o Brasil já estava acostumado acabou ganhando outros contornos com a desconfiança de que o zika trazia graves consequências para os fetos. Uma verdadeira ameaça para as mulheres em idade reprodutiva, especialmente as gestantes. “O zika, de doença tropical comum, passa a ser um profundo sofrimento para as mulheres”, diz Débora Diniz, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e uma das vozes mais atuantes na denúncia dos desdobramentos da epidemia no interior do País.

Em julho de 2016, o Instituto Patrícia Galvão realizou, com apoio da ONU Mulheres e da Fundação Ford, duas pesquisas com gestantes de vários estados brasileiros para avaliar como a epidemia as afetava. A pesquisa qualitativa apontou que os casos de microcefalia aumentavam o lado negativo da gravidez, período já permeado por medos e incertezas. E quanto menos informação disponível sobre a epidemia, maior era esse sentimento. Fora isso, a pesquisa apontou como a responsabilidade de não contrair zika e não afetar a criança recaía sobre elas: “Elas relatam preocupação dos companheiros, que pedem para que usem repelente e roupas que protejam o corpo. Mesmo assim, sentem-se como as principais responsáveis pela saúde do bebê. Acreditam que, caso algum problema aconteça, elas é que serão culpabilizadas (pela família e pela sociedade) e terão de se responsabilizar pelo bebê.”

A pesquisa quantitativa, realizada com 3.758 mulheres, também trouxe apontamentos importantes para entender o contexto da epidemia de zika: cerca de um terço das grávidas não planejaram a gravidez, número que aumenta entre as mulheres de baixa escolaridade. A maioria delas realiza os exames e consultas sem a presença do pai do bebê, embora desejem essa companhia, e realizam menos exames de ultrassom do que gostariam. A transmissão sexual da doença também era desconhecida por 45% das mulheres.

Essas questões associadas à gravidez em contexto de zika também foram encontradas pela Human Rights Watch em seu relatório Esquecidas e Desprotegidas, com uma conclusão similar: as meninas, assustadas, procuram evitar ou adiar a gravidez, mas nem sempre isso é possível, porque falta informação e também acesso a métodos contraceptivos e de planejamento familiar. A criminalização do aborto também obriga muitas mulheres e recorrer a procedimentos clandestinos para interromper a gestação indesejada.

Um estudo de 2016, publicado no The New England Journal of Medicine, mostrou um aumento de 108% nas solicitações de aborto oriundas do Brasil na Women on Web — uma organização que fornece medicação abortiva para países onde o procedimento seguro é altamente restrito — após o anúncio da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) sobre os riscos do vírus zika.

Para assegurar que o Estado garanta os direitos reprodutivos das mulheres, a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), com a consultoria da Anis, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF). Como Débora explica, a ação visa proteger a maternidade e a infância, tendo como principais frentes o acesso à informação sobre os riscos do zika, a oferta de métodos de planejamento familiar para que as mulheres possam escolher se querem ter filhos ou não, além do direito de interrupção da gestação.

A ação também defende a garantia do transporte para que as mulheres possam se deslocar para que seus filhos, nascidos com a síndrome congênita do zika, possam realizar o tratamento e a universalidade da proteção social através do pagamento do Benefício da Prestação Continuada (BPC) para todas as famílias afetadas, independente da renda.

Mães da União de Mães de Anjos realizaram ato em Recife na quinta-feira (27). Três óbitos foram registrados no último mês
Mães da União de Mães de Anjos realizaram ato em Recife na quinta-feira (27). Três óbitos foram registrados no último mês

Polêmico no Brasil, a ação, no entanto, ficou mais conhecida por conta do tópico do aborto, que Débora julga imprescindível. “Não incluir o pedido por medo da polêmica não representaria as necessidades das mulheres”, diz ela. “Esta é uma vulnerabilidade imposta pelo Estado e que coloca as mulheres em sofrimento. Não tem a ver com o feto ter ou não a síndrome, mas com o sofrimento da mulher.”

Nas mãos da sorte

As mães cujos filhos nasceram com síndrome congênita do zika lutam agora para que o Estado cumpra o que prometeu no auge da epidemia: todo o apoio e atenção para as crianças afetadas. No entanto, segundo dados do próprio Ministério da Saúde, dos 246 casos confirmados em 2017 até o dia 13 de maio, apenas 62 crianças receberam atendimento em puericultura, 45 receberam estimulação precoce e 61 receberam atenção especializada, os três tipos de tratamento considerados essenciais para o desenvolvimento do bebê.

Em Pernambuco, cerca de 300 mulheres fazem parte da União de Mães de Anjos (UMA), todas com filhos afetados pelo zika. Elas reivindicam principalmente o pagamento do BPC, o deslocamento para realizar os tratamentos e a assistência especializada com a criação de um Centro de Reabilitação para Patologias Raras.

“As dificuldades são muitas, só no último mês três crianças morreram por não terem um local especializado para tratá-las”, diz Marciane Rocha, mãe de Pérola, de 1 ano e 10 meses, e outros três filhos. Ela explica que muitas crianças não têm imunidade e, internadas em hospitais comuns e superlotados, contraem infecções e não resistem. “Minha filha nunca precisou ser internada, mas se um dia ela precisar queria ter a certeza de que ela não vai sair morta.”

Marciane é natural de Betânia, município de 12 mil habitantes no sertão pernambucano, e mudou-se há 6 meses com os quatro filhos para Recife para poder ter acesso ao tratamento de qualidade. Cansou-se da burocracia de “se humilhar” para a prefeitura garantir o transporte até os centros de tratamento, muitas vezes, fornecido apenas de forma parcial, tendo que a família arcar com parte dos custos. Como muitas outras mães, Marciane trabalhava e agora dedica-se exclusivamente ao cuidado da filha, o que tem impactos diretos em sua renda, especialmente se o Estado não concede o Benefício da Prestação Continuada. Só de medicamentos, ela gasta mais de 400 reais por mês.

“O governo, ao invés de incentivar as mães a não desistir de cuidar dos seus filhos, só faz a gente desanimar” – Marciane Rocha, mãe de Pérola, de 1 ano e 10 meses

“No início da epidemia, a surpresa e a pressão fizeram com que as autoridades fizessem uma série de promessas, que passaram para o total silêncio”, avalia Débora Diniz, que recentemente publicou um relatório sobre a situação das mulheres afetadas em Alagoas. “Para essas mulheres, o zika nunca deixou de ser emergência, só deixou para a política pública”, diz a antropóloga.

Desde o início das investigações, em outubro de 2015, o Ministério da Saúde informa que 13.835 casos de microcefalia sugestivos de infecção congênita foram notificados, sendo que 2.753 foram confirmados e outros 3.211 continuam em investigação. Em 2017, 322 casos haviam sido confirmados até 20 de maio. Nem todos são causados por infecção pelo zika, já que a microcefalia tem outras causas, mas a Pasta considera a epidemia responsável pela maior parte dos diagnósticos. As recomendações do Ministério para as gestantes seguem na mesma linha: eliminação de criadouros e proteger-se da exposição de mosquitos.

Como responder à epidemia?

Uma coisa é consenso: uma epidemia multifatorial exige esforços conjuntos para ser erradicada. Um desafio em qualquer época, mas que agora enfrenta um obstáculo a mais: o congelamento de gastos públicos nos próximos 20 anos em uma área que historicamente depende de investimento estatal. Segundo o Plano Nacional de Saneamento Básico, universalizar água e tratamento de esgoto exigirá um investimento de R$303 bilhões em 20 anos.

“No atual processo de políticas econômicas e sociais, o risco é aumentar processos que levam à pauperização de grupos já pobres. Eles são vulneráveis a qualquer mudança econômica ou políticas de proteção social e podem ficar ainda mais vulneráveis a novas epidemias”, analisa André Monteiro, pesquisador da Fiocruz Pernambuco. Para Débora Diniz, os governos estaduais ainda podem resistir e não derrubar seus decretos. Em Pernambuco e Alagoas, por exemplo, o zika permanece como uma emergência de saúde pública.

O pesquisador da Human Rights Watch, João Bieber, também enfatiza que, além de multifatorial, a resposta à epidemia precisa se dar em todos os níveis: municipal, estadual e federal, e que essa é uma oportunidade para o Brasil aprender a ter um planejamento de longo prazo, como resumido nas recomendações do relatório da organização. “Uma abordagem do surto de zika baseada nos direitos humanos deve preencher, em particular, lacunas relativas ao cumprimento dos direitos a água e saneamento, direitos reprodutivos das mulheres e meninas e direitos das pessoas com deficiência e seus cuidadores.”

As plataformas da Cidade Escola Aprendiz utilizam cookies e tecnologias semelhantes, como explicado em nossa Política de Privacidade, para recomendar conteúdo e publicidade.
Ao navegar por nosso conteúdo, o usuário aceita tais condições.

Portal Aprendiz agora é Educação & Território.

×