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publicado dia 10 de abril de 2018

Cooperapas aposta no alimento orgânico como transformador das relações entre comunidade e território

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O distrito de Parelheiros é o segundo maior em extensão da cidade de São Paulo, com 153 km² pouco povoados. São neles que correm os únicos rios limpos da capital paulista, Monos e Capivari, serpenteado as reservas remanescentes de Mata Atlântica e ofertando água para a população e para a irrigação do solo. O bairro localizado no extremo sul de São Paulo concentra, junto com o distrito de Marsilac, a maior área agrícola da capital.

Leia +: No século 21, cidades tem como desafio ressignificar a alimentação

Para descobrir outra característica particular de Parelheiros, é preciso escavar a terra. Nesse planalto fértil, abobrinhas, brócolis e berinjelas crescem livres de agrotóxicos ou adubos químico. Uma porção matizada de legumes e verduras nasce no seu tempo, e para protegê-las de insetos ou fazê-las germinar, as soluções são sempre naturais. O que se recolhe é uma fruta que pesa e mede o que a natureza determina.

matas e céu azul
Vista do distrito de Parelheiros / Foto por divulgação da Cooperapas

Essa produção agrícola é provida do trabalho das 35 cooperadas e cooperados que integram a Cooperapas – Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo. Criada em 2011, a cooperativa nasceu do desejo de alguns agricultores familiares de não mais produzir alimentos com os métodos ditos “convencionais” – uso de agrotóxicos para reter pragas, uso de adubos ou fertilizantes químicos para acelerar o crescimento de hortaliças – e migrar para utilização de resíduos ou adubos orgânicos.

Por trás do rompimento com as práticas convencionais de produção de hortaliças estava também a vontade de reaproximar-se do alimento, entendendo-o para além de um produto a ser consumido, mas como um elo de conexão com o entorno e caminho possível para uma cidade sustentável e educadora.

Para que uma planta possa ser colhida, o agricultor ou agricultora deve ter profundo conhecimento do seu território. Assim, o alimento se converte em fonte de saber, levando seu produtor em uma jornada nem sempre simples, porém repleta de conhecimento.

Como definido pela Lei 5.764, que define a Política Nacional de Cooperativismo, o contrato de cooperativismo nasce quando as pessoas reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica. O lucro não é o objetivo final da produção, que se preocupa também com perspectivas sociais e ecológicas. Fonte: Politize

Valéria Maria Macoratti, atual presidente da Cooperapas, rememora que o início da cooperativa implicou essa mudança de mentalidade nos agricultores, muitos deles acostumados com a ideia da intervenção química: “Eles poderiam até estar trabalhando com o que nós chamamos de produção envenenada e que os outros chamam de convencional, mas se quisesse fazer parte da cooperativa, teriam que estar disposto a mudar.”

Não era, contudo, uma tarefa simples, porque os agricultores da região desconfiavam de que cooperativas e um sistema de participação social pudesse funcionar. Muitos deles viram seus negócios falirem quando a Cooperativa Agrícola de Cotia quebrou. Não era de se estranhar, portanto, que o fantasma da falência pairasse sobre os primeiros anos da Cooperapas.

Nas primeiras reuniões, que aconteceram na sede da prefeitura de Parelheiros, a desconfiança se materializava em pouca participação: eram apenas três ou quatro tímidos agricultores ocupando uma sala com espaço para mais de 50 pessoas.

Sua presidenta lembra que, em 2011 e 2012, não havia sido produzido nenhum tipo de receita senão aquela necessária para a própria sobrevivência alimentar dos cooperados. Paradoxalmente, foi contraída uma dívida de mais de 12 mil reais pela não declaração de um documento. Ante a insustentabilidade da situação e a perspectiva de bancarrota sem nem ao menos ter feito uma venda, o grupo optou por uma reorganização radical.

Mulheres e comunidade no poder

Valéria não nasceu em uma família de agricultores. Viveu a maior parte de sua vida no fervor urbano de Itaquera, zona leste da cidade, e embora gostasse muito de mexer na terra, só o fazia esporadicamente.

Somente depois de comprar um sítio com sua mulher, Vânia, ela iniciou cursos de agricultura. O seu envolvimento com a Cooperapas se deu de forma espontânea e pouco pretensiosa, mas ante a perspectiva de término de um universo com o qual acabava de se envolver, não teve dúvidas: pleiteou a vaga de presidenta.

O Brasil é campeão do uso de agrotóxicos, consumindo 20% do que é comercializado mundialmente. A legislação do país permite o uso de 540 agrotóxicos. Desses, 30% são proibidos pela União Europeia há mais de 30 anos. Outro dado preocupante é a quantidade de agrotóxico encontrada na água potável. O herbicida glifosato é encontrado 5 mil vezes mais na água do território brasileiro que o permitido nos países europeus. Fonte: Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia.

“Na primeira assembleia feita para eleger a presidência, todos os homens na sala me deram motivo para não participar. Eu e mais três mulheres nos reunimos em um canto, criamos uma chapa e apresentamos a proposta de presidência. Assim começou a ser reerguida a Cooperadas, com as mulheres no poder”, recorda Valéria.

A reorganização teve sua primeira grande conquista em 2014, quando começou a fornecer alimentos ao Instituto Chão, feira localizada no bairro Vila Madalena. O cooperado responsável por fazer a ponte foi Arpard Spalding, gestor de projetos do Instituto Kairós. Um caminhão fretado levou a primeira leva de verduras do extremo sul para as ruas grafitadas do bairro na zona oeste, firmando uma frondosa parceria que continua até hoje.

A colaboração ramificou-se para que outras se formassem: hoje a Cooperapas tem uma barraca fixa na Feira de Orgânicos do Ibirapuera. A qualidade dos produtos comercializados chamou a atenção de alguns restaurantes, que viram a oportunidade de incluir em seu cardápio uma gama alimentícia orgânica. A adesão ganhou mais força com o apadrinhamento e apoio da chef argentina Paola Carosella, que anunciou em suas redes sociais que a cooperativa seria responsável pelas hortaliças servidas no seu badalado restaurante Arturito.

cenoura, pimentão e outras hortaliças em uma barraca
No Instituto Chão, barraca da Cooperapas oferta diversos tipos de hortaliças / Crédito: Divulgação do Facebook da Cooperapas

Hoje estruturada, a Cooperapas funciona com o esquema de taxa: um pouco do que o agricultor vende é convertido para a cooperativa, que gasta na manutenção do espaço e no pagamento de funcionários como contadores ou agrônomos. Nem todos os agricultores conseguem produzir a cota desejada, e a cooperativa está se reestruturando para orientá-los de acordo com as demandas.

Depois de seis anos de luta contra burocracias e um trabalho hercúleo para levar os alimentos a todos os cantos da cidade, a Cooperapas iniciou o ano de 2018 sem dívidas e com uma receita de lucro. O pequeno espaço dentro da prefeitura não mais comporta as necessidades, e eles preparam a mudança para um terreno de 16 hectares cedido por uma empresa parceira.  O desejo é investir e consolidar a região enquanto um polo de agricultura orgânica, e que o retorno seja ambiental, social e aplicado ao território.

Alimento orgânico é saúde

Para explicar as vantagens nutricionais e ambientais dos alimentos orgânicos, Valéria metaforiza: “Pense no alimento como um atleta competidor de uma olimpíada. O atleta que treina, que tem vitalidade, que se aprimora, é o alimento orgânico; o atleta que pratica dopping é o convencional, o envenenado.”

Nas plantações orgânicas, não existe monocultura, assim como não existe em florestas ou outros ecossistemas ainda intocados. Valéria explica que quanto menos interferência no solo e mais confiança nos recursos naturais, melhor: “Todo o ecossistema da plantação orgânica é gestada para ser sem desperdício: o mato quando cresce vira adubo, as cascas de alimento fertilizam a terra e o solo é mexido pouco, para conservação dos nutrientes necessários às plantas.”

alface crespa e verde na terra
Alface orgânica / Crédito: Foto por página de facebook da Cooperapas

“É a coisa mais linda a agricultura sem agrotóxicos ou químicos”, se emociona Regiane Bispo, uma das cooperadas e a responsável por vender produtos na feira do Ibirapuera. “As pessoas estão consumindo um alimento seguro, que faz bem para a saúde e também para o campo”, complementa. Ela hoje produz alimentos variados, entre couve, beterraba, rabanete, além de ervas como manjericão, hortelã e capim-cidreira.

A rotina de Regiane é compartilhada por muitos outros agricultores; ela acorda bem cedo, ao despontar do sol, se organiza matinalmente para entender o que ela irá ofertar para Cooperapas, e também o que precisa colher a partir das demandas da cooperativa, e durante toda à tarde, ela e a mãe colhem os maços. O dia termina com uma janta e mudas plantadas em pequenos vasos, ansiosas para estarem na terra no dia seguinte.

Comprar frutas, legumes e verduras na sua época natural de colheita impulsiona a economia local, diminui as distâncias entre produtor e consumidor, o que reduz o desperdício durante o transporte. Em abril, alimentos como escarola, gengibre e pitaia estão no seu auge. Se quiser saber mais, acompanha o site Orgulho Xepa, que atualiza mensalmente a lista de alimentos “da época”.

A adoção de orgânicos, na opinião de Valéria, é também uma atitude política e que reverbera num futuro com menos gastos em saúde pública. Foi com imenso orgulho que a Cooperapas firmou com a prefeitura de São Paulo um acordo para fornecer alimentos orgânicos para toda rede de escolas municipais da cidade. O diálogo de efetivamente da lei nº16.140, criada pelo então prefeito Fernando Haddad (PT) e que prevê 100% de alimentos orgânicos na rede municipal, enfrentou um longo hiato burocrático quando João Dória (PSDB) assumiu o cargo.

“Há um tempo, esse mesmo prefeito estava pensando em oferecer “farinata” no cardápio de estudantes e pessoas vulneráveis de São Paulo”, alfineta Valéria, se referindo à proposta polêmica e veemente rechaçada proposta pela gestão atual de servir a mistura pouco nutritiva. “Foi um tiro no pé tão grande, e a briga foi maior ainda. Fizemos um protesto na frente da prefeitura, o Banquetaço, servindo alimentação de verdade para a população, mostrando que ela existe e está disponível para ser entregue aos órgãos públicos”, completa a agricultora.

alguns alimentos em cima de uma barraca
Barraca com alimentos ofertados pela Cooperapas / Crédito: Foto da página de facebook da cooperativa

O acordo firmado com a prefeitura em 14 de fevereiro de 2018 prevê a entrega de 56 toneladas de produtos orgânicos ao longo do ano escolar municipal. “São alimentos fáceis de preparar. Com esse acordo, se mostra ao poder público que investimento em alimentação orgânica é economia em saúde e remédio. Os hábitos alimentares do ser humano estão tão deturpados que temos que fazer o caminho inverso: ao invés de pais e mães ensinarem aos filhos o que comer, são essas crianças, que comem alimento orgânico na escola, que vão chegar em casa e reeducar a alimentação da sua família”, afirma Valéria.

 “Os hábitos alimentares do ser humano estão tão deturpados que temos que fazer o caminho inverso: ao invés de pais e mães ensinarem aos filhos o que comer, são essas crianças, que comem alimento orgânico na escola, que vão reeducar a alimentação da sua família

A Cooperapas deseja que o desdobramento dessa parceria vá muito além do fornecimento de alimentos. Ela enseja com organizações não governamentais e parceiros a proposta de criar hortas dentro das escolas municipais, mostrando a possibilidade de se criar alimento no próprio território, desenvolvendo autonomia alimentícia para as crianças, a escola e a comunidade ao seu redor.

É o desejo de que esse alface ou pimentão seja um elo do saber entre os diferentes atores de um território. Ele não está só no prato ou na boca: a criança que plantou sua semente, regou-a esporadicamente; o cozinheiro da escola o preparou; a mesma criança a prepara e espalha sua sabedoria para sua família, amigas e vizinhos.

Valorização do território e do agricultor

Quem de vocês gostaria de ser agricultor?”, perguntou Valéria para uma plateia de 200 adolescentes estudantes da rede pública da região de Parelheiros, em evento ano passado. “Eu vi menino até se benzendo contra. Imagine em uma área rural, você estar dentro da escola e perguntar para os alunos, cujos pais são agricultores, e eles disserem que não querem de jeito nenhum. É uma das profissões menos valorizadas que existe, embora não exista noção mais clara de que se o agricultor não produzir, ninguém vai ter o que comer.”

O abastecimento e alimentação diária de qualquer cidade provêm dos agricultores familiares quem vivem em suas imediações. Estima-se que 70% da produção alimentícia de todo o país provenha dessa produção.

família de cooperados
Família de cooperados / Crédito: Foto na página do Facebook

O que Valéria tem se esforçado para reproduzir entre os agricultores próximos e sua prole é um sentimento de orgulho de sua profissão, criando narrativas disruptivas de amor à terra e da importância de seu manejo consciente.

“Quando se começa a rememorar a infância dessas crianças, e se contam narrativas de comer fruta no pé, ter como quintal uma horta, ver o pai e mãe plantar, se percebe a nostalgia. O agricultor de hoje tem celular para acompanhar mudanças meteorológicas, faz pesquisa, é bem formado, e é responsável pelo o que comemos todos os dias. Existe muito do que se orgulhar”.

O sentimento de orgulho e a oportunidade de trabalho têm feito alguns agricultores retornarem, depois de tentar empregos na cidade. A própria Regiane, que saiu de uma infância agrícola para morar na cidade, hoje se orgulha de seus estandes coloridos dentro das feiras, com o amarelo da banana, o vermelho do pimentão, e da abundância de verde que vem do seu sítio em Parelheiros.

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