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publicado dia 5 de setembro de 2013

Professor espanhol aponta “sentidos ocultos” na educação

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"Uma educação emancipadora é sempre muito crítica e, ao mesmo tempo, otimista."

Quantos problemas do mundo não partem da forma como estruturamos nossas escolas e o conhecimento?  Essa é uma das perguntas fundamentais feitas pelo professor espanhol Jurjo Torres Santomé, que recentemente lançou no Brasil seu livro “Currículo Escolar e Justiça Social”, pela editora Penso.

Santomé, que é diretor do Departamento de Educação e coordenador do grupo de pesquisa em Inovação Educacional da Universidade de La Coruña, aponta em seu livro os “sentidos ocultos” da educação, responsáveis muitas vezes por gerar conhecimentos que alimentam preconceitos, padrões normativos e seres humanos competitivos e pouco solidários.

Uma alternativa, segundo ele, estaria na capacidade das comunidades, escolas, pais e mestres, criarem metodologias que ensinassem os jovens a trabalhar juntos, a respeitar as diferenças e, acima de tudo, pensar sobre o mundo no qual estão inseridos, de forma crítica, porém otimista.

Em entrevista por e-mail ao Portal Aprendiz, o professor ressaltou que seus pensamentos partem da experiência espanhola e que em educação “não há receita mágica”. Mas suas conclusões sobre os papéis desempenhados pela educação formal, livros didáticos e professores, podem ser úteis para pensar a realidade brasileira do ensino. Acompanhe:

Portal Aprendiz: O subtítulo de seu livro encara o currículo escolar como um “Cavalo de Troia”. Qual a ideia por trás de tal afirmação?

Jurjo Torres Santomé: Eu vinculo a ideia do Cavalo de Troia ao papel que desempenham nas aulas – tanto para o alunado como, em numerosas ocasiões, para o professorado – os livros e manuais didáticos usados no ambiente escolar. Se analisarmos detalhadamente os conteúdos desses livros, muitas vezes impostos como obrigatórios, e as interpretações que as editoras fazem deles, encontraremos um mundo completamente segregado e, no caso espanhol, com análises da realidade politicamente muito conservadoras, classistas, sexistas, católicas, racistas, nacionalistas, adultocêntricas, homofóbicas, militaristas, eurocêntricas e infantilizadas. Isso tanto nos textos quanto nas ilustrações. Logicamente o professorado confia na objetividade, rigor científico e neutralidade dessas obras, mas um mínimo de análise de conteúdo faz com que essas dimensões ocultas aflorem, no melhor estilo Cavalo de Troia.

Portal Aprendiz: O senhor afirma que a educação formal no campo muitas vezes serve como uma motivação para o êxodo rural. Como pensar em uma educação rural que não seja mais uma razão para a saída do campo para as cidades?

Torres: Efetivamente, ao menos na Espanha e no resto da Europa, a educação também contribuiu ao êxodo, uma vez que nos conteúdos e as explicações da realidade apresentados aos estudantes, tanto nos livros como demais materiais, a vida urbana é absolutamente dominante. O mundo rural, quando aparece, o faz desde um ponto de vista da pessoa da cidade que, aos finais de semana ou quando está de férias, se dirige ali para descansar e contemplar a natureza e outras espécies de animais.  As crianças acabam por conhecer como se vive nas cidades, que trabalhos existem ali mas pelo ponto de vista das classes sociais altas e médias.

"O que é trabalhado em sala convence o aluno que onde melhor se vive é na cidade".

Não são informados, nem nos ajudamos a saber porque a vida é mais dura no mundo rural e nas pequenas cidades que vivem da pesca – assim como nas favelas e bairros vulneráveis. Porque existem menos facilidades para viver com dignidade, menos recursos culturais e educativos, menos médicos, menos opções de trabalho, piores salários etc. Não são incentivados a investigar esse mundo e muito menos a descobrir como se pode melhorar essa realidade injusta. Os recursos informativos que são trabalhados na sala de aula, no fundo, só convencem ao alunado que onde melhor se vive é na cidade e, portanto, que esse é o destino a ser aspirado.  Essa situação é justificada pelas necessidades de mão de obra nas fábricas, o que possibilitou, principalmente na Europa, EUA e Canadá, a revolução industrial do século 19 e em grande parte do 20. Mas esta filosofia também foi assimilada em grande medida pelo resto dos países do mundo, já que seus materiais didáticos costumam se inspirar naqueles de realidades mais industriais. Mas, na atualidade, penso que este modelo de megacidades deveria ser revisto, já que as novas revoluções tecnológicas não se baseiam no modelo da construção de grandes fábricas para centenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras.

Portal Aprendiz: A escola ensina mais que as disciplinas? Quais são seus sentidos ocultos?

Torres: Sim, de fato, a escola ensina muito mais, tal como tentei demonstrar em meu outro livro, El currículum oculto [O currículo oculto]. É uma temática que reaparece em todas minhas investigações e publicações. Fundamentalmente são aprendizagens não intencionais, ou seja, que não estão no programa do professor de uma maneira expressa. São as consequências das cosmovisões e ideologias nas quais fomos educados e assumimos como “naturais”, “óbvias” e “lógicas”. Uma ideologia, quando se torna hegemônica, se plasma em determinadas práticas, rotinas, tradições, motivações e interesses que, de uma maneira consciente e reflexiva, nós não tratamos de trazer à luz, investigar, analisar e questionar. Esses tipos de tarefas que programamos e que cremos que são educativas pois são partes do “senso comum”, “sempre foram assim”, “aprendi assim”, são as que seguem propondo os livros didáticos.

"A realidade nos mostra que de nossas aulas seguem saindo estudantes muito competitivos, não solidários, não cooperativos, não democráticos".

Isso é que acontece, por exemplo, quando ficamos obcecados com que os estudantes aprendam de memória determinados conteúdos, que realizem certas tarefas em seus cadernos, sem parar para pensar se essa tarefa é importante, sem prestar atenção reflexiva ao porquê, com que finalidade, com quem, com que outros possíveis recursos se poderia contar,  que tarefas alternativas poderiam lhe auxiliar a entender melhor e com mais profundidade esse tema de estudo, em que medida está aprendendo a trabalhar em equipe, a pensar criticamente etc.

A realidade quando analisada nos mostra que de nossas aulas seguem saindo estudantes muito competitivos, não solidários, não cooperativos, não democráticos. Estudantes que enganam (ao menos na Espanha seguem enganando seus professoras e professoras ao ‘colar’ nas provas, plagiar trabalhos escolares, mentindo e, o que é mais grave, ocultando suas dificuldades e erros). Isso significa que não estamos educando e sim ‘mal-educando”. Obviamente, nenhum docente tem estes resultados em seu programa, na sua lista de objetivos a conquistar. Por isso batizamos esse mecanismo de “currículo oculto”, ou seja, aquelas aprendizagens que acontecem na aula “sem querer”, o que é ainda mais frustrante quando o que pretendíamos era educar pessoas democráticas, pensativas, críticas e solidárias.

Portal Aprendiz: Como a comunidade, na qual a escola está inserida, pode ajudar a constituir um programa escolar? E os pais? Quais são os impactos de tal participação?

Torres: Para mim está é uma de nossas tarefas urgentes e tema de meu último livro. Todos nós devemos nos dar conta de que educar é parte de um projeto político destinado a construir o futuro da sociedade da qual somos parte. A educação é um dos projetos mais otimistas que existem e temos a obrigação de participar. É um ato de amor à  infância e à juventude, pois se trata de lhes ensinar como é o mundo, porque ele é assim, que coisas e produções culturais valem a pena, mas também que desigualdades e injustiçam caracterizam nossa sociedade e, a partir daí, debater como deveria ser, como gostaríamos que fosse nossa comunidade e o mundo em geral.

É lógico que, tanto neste debate – como na tomada de decisões posteriores e implementação de medidas de apoio para tornar realidade essa educação emancipadora e liberadora -, todos temos que nos envolver e colaborar: professores, famílias, organizações comunitárias, outros profissionais e, claro, os poderes locais. Se trata de construir uma comunidade ou cidade educadora, da qual as escolas são seu recurso principal, mas tampouco o único.

É nossa tarefa educativa fundamental aprender a envolver os pais e mães, pois sem sua colaboração, nosso trabalho nas aulas é muito mais difícil e pobre. É importante gerar um clima de otimismo e expectativas altas especialmente com as famílias mais pobres e vulneráveis, e,  que todas as crianças vejam sua família com um papel importante neste projeto educativo. Caso contrário, é muito fácil que tenha lugar outro aprendizado oculto bastante injusto: aprender a culpar sua família por todos os problemas e, por consequência, odiá-la.  Muitos jovens acabam por desenvolver esse tipo de comportamento, de aprendizado oculto, pois os livros didáticos falam de um modelo de família muito diferente do seu, causando que até sintam vergonha de suas famílias. Infelizmente, ainda temos muitas escolas que não prestam qualquer atenção a essas questões.

Portal Aprendiz: Em 2012, um projeto do governo brasileiro tentou criar uma série de materiais para falar com os jovens sobre homofobia. Ele foi nomeado, por setores religiosos, de “kit gay” e nunca foi levado às escolas. Em sua opinião, como os materiais didáticos influenciam na formação das crianças?

Torres: Este é um bom exemplo dessa agenda homofóbica e de como os livros didáticos funcionam como cavalos de Troia, ao não falar abertamente de tais questões. Pensamos que estes livros contém verdades científicas, coisas interessantes, qualidade, objetividade e tudo mais, pois seriam escritos por pessoas inteligentes ou sábias. Mas não somos educados para analisar criticamente essas informações ali apresentadas, não somos acostumados a pensar que todos os autores e autoras, pesquisadores e pesquisadoras, professores e professoras, enfim, são todos seres humanos com falha, ideologias, crenças, lacunas informativas, interesses particulares, falsas expectativas e deformações no conhecimento que construímos e ensinamos.

LGBT diversidade homofobia/Créditos: Nito/Fotolia
"Ocultar que existem pessoas gays equivale a desinformar e converter em homofóbicos todos os seres humanos."

É por isso que uma de minhas pretensões é a de convencer ao professorado de que devem analisar minuciosamente que modelo de realidade e interpretações da ciência e dos modos de organizar e funcionar em nossa sociedade estamos apresentando como objetivas, racionais e científicas. Assim saberemos quais são as visões que silenciamos, ignoramos ou deformamos. Ou seja, é preciso que nós, enquanto docentes, nos interroguemos e ensinemos os nossos alunos a interrogar suas fontes informativas: Quem fala? Quem nunca aparece? Quem deformamos e manipulamos? Quem nós estamos invisibilizando e apresentando como natural? O que estamos ocultando?

Os livros de apoio são uma ferramenta fundamental na construção do “senso comum”, do que merece pena e do que está mau. Ocultar que existem pessoas bissexuais, gays, lésbicas e transsexuais equivale a desinformar e converter em homofóbicos todos os seres humanos, algo que com certeza alguns setores ultracatólicos e fundamentalistas defendem.

Portal Aprendiz: A tecnologia, para muitas pessoas, emerge como salvadora. Como você avalia sua presença na vida dos estudantes e no ambiente escolar?

Torres: A tecnologia é imprescindível como recurso, pois é um instrumento decisivo para nossa comunicação, como recurso informativo e também para intervir sobre a realidade. Mas é um recurso, não um fim da educação. Suas novas linguagens e funções são algo que o alunado deve aprender a dominar e utilizar criticamente. O perigo é converter este recurso na finalidade principal da educação. Não podemos esquecer que essas tecnologias supõem um importante negócio para muitas multinacionais e empresas que as fabricam. E a política dessas corporações passa por nos convencer que se um estudante adquire e sabe utilizar determinado software, navegar, enviar mensagens, postar algo no Facebook ou no Twitter, já está educado. Mas a educação é ensinar a utilizar de maneira reflexiva, crítica e cooperativa estes recursos, tal qual fazemos com escrever no papel, consultar bibliotecas, ler livros, revistas e jornais.

Estamos diante de aparatos que são decisivos em nossa vida, mas queremos que sejam utilizados como recursos que nos facilitam a vida, a nosso serviço, ou seja, não para nos transformar em escravos e, de forma concreta, daqueles que os desenham e vendem. São um recurso a mais, tal como os livros, as máquinas de escrever, os discos, as fitas de áudio e vídeo, os toca-discos, projetores de cinema, televisões, máquinas de xerox etc.

Portal Aprendiz: Como a escola pode trabalhar efetivamente a questão da diversidade humana e cultural?

Torres: É precisamente tornando-a visível e valorizada. Apresentando aos estudantes uma sociedade em que existem meninos e meninas, adolescentes, adultos, pessoas de terceira e quarta idade e pessoas que pertencem a distintas classes sociais e que, portanto, algumas têm mais facilidades e outras sofrem maiores desigualdades e injustiças. Mostrar que há diferentes sexualidades, mas nem todas são tratadas com o mesmo respeito. Que temos diferentes capacidades, mas todos somos necessários e valemos a pena; que existem pessoas com enfermidades psíquicas ou físicas, que pertencem a diferentes etnias ou raças, mas que somos todos iguais e temos os mesmos direitos; que compartilhamos a vida e os recursos de um mesmo planeta e que é nossa obrigação conservar tais recursos da natureza para que também as próximas gerações as tenham a sua disposição. Quer dizer, trabalhando com nossas alunas e alunos no conhecimento e análise das distintas convenções de Direitos Humanos que fomos aprovando como o mínimo necessário para convivência, respeito e colaboração na Organização das Nações Unidas (ONU). Ensinar que essas convenções também precisam ser melhoradas, para incluir ausências bastante graves, como a convenção dos direitos das pessoas homossexuais, o direito à  informação e ao conhecimento, os direitos das outras espécies de animais e da natureza etc.

"É verdadeiramente injusto que em pleno século 21 ainda permitamos a existência de colégios que segregam"

Para que tudo isso que afirmei aconteça, precisamos que os estudantes estejam agrupados e trabalhando juntos de um modo inclusivo, ou seja, é verdadeiramente injusto que em pleno século 21 ainda permitamos a existência de colégios que segregam por sexo, por capacidades (escolas “normais” e para “superdotados”, por exemplo), por classe social ou crenças religiosas. Os colégios públicos são o melhor espaço para levar a cabo projetos curriculares antirracistas, antisexistas, anticlassistas, não homofóbicos e laicos. É um espaço privilegiado para aprender a viver, trabalhar e colaborar juntos.

Portal Aprendiz: Como garantir uma formação de professores que contribua com tudo isso?

Torres: Estou convencido de que a melhor estratégia é incorporando todas estas temáticas que venho comentando nesta entrevista nos programas de formação inicial do professorado nas universidades, assim como nos programas de atualização e dinamização dos profissionais que já estão em atividade.

Portal Aprendiz: Você destacaria alguma experiência ou boa prática de educação emancipadora?

Torres: Qualquer projeto curricular ou experiência educativa capaz de gerar sonhos nos estudantes. Uma educação em que meninas e meninos aprendam a conhecer bem como é seu mundo e que ao mesmo tempo os incentive a pensar alternativas, a gerar capacidades de imaginar, inclusive outros futuros melhores. Uma prática educativa que faça o alunado sentir que “sim, podemos”, algo que metodologias mais ativas, baseadas em projetos de investigação, fazem.

"Precisamos gerar capacidades de imaginar, inclusive outros futuros melhores".

Podemos intervir no presente, tal como outras pessoas no passado se arriscaram a fazer. Uma pedagogia do otimismo e do empoderamento se baseia em incindir em todos os assuntos do passado e do presente, vendo que as melhoras da sociedade só foram conquistadas com muitas lutas por justiça. É preciso fomentar perguntas e enfoques que incidam no que fazer, como fazer e onde localizar ajuda, com quais recursos e dando quais passos. E não somente quem fez tal ou qual coisa, onde e como, pois assim é muito mais fácil fomentar a passividade e se sentir à margem e sem poder. Neste sentido, um currículo integral e integrado é uma estratégia indispensável, pois interconecta todas dimensões possíveis de conhecimento e aprendizagem.

Por fim, uma educação emancipadora é sempre muito crítica e, ao mesmo tempo, otimista, pois deve ajudar a nos dotar de confiança para seguir aprendendo e melhorando. Vocês tem aí no Brasil o valioso legado de Paulo Freire e sua pedagogia que caminha nesta direção.

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