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publicado dia 1 de outubro de 2014

Agências privadas buscam democracias ‘incipientes’ para sediar megaeventos

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SELO-BALANCO-DA-COPAHá 80 dias o Maracanã sediava a final da Copa do Mundo, jogo no qual a seleção alemã venceu a Argentina, coroando um trabalho bem organizado que prezou pela interação dos jogadores com a população local. Fora de campo, entretanto, é difícil dizer que o megaevento já terminou.

Afinal, ele deixou um legado para os brasileiros que, mesmo quase três meses após o encerramento do torneio, ainda é difícil de ser avaliado. O Portal Aprendiz já relatou casos de balanço negativo – como a falta de cumprimento do direito à moradia e a insuficiência da rede protetora de crianças e adolescentes – e positivo, como a transparência e o acesso às contas públicas e uma nova mentalidade acerca da mobilidade urbana (apesar dos inúmeros atrasos e projetos discutíveis na área).

“O balanço apressado é tão perigoso quanto o anúncio prévio de que a Copa seria um desastre”, pondera o jornalista Juca Kfouri em debate que avaliou os diversos legados deixados pela competição esportiva, realizado no Museu do Futebol, em São Paulo.

Oportunidade

Ele cita um trecho do livro Soccernomics: a Copa do Mundo é uma oportunidade de um país fazer propaganda de si mesmo durante 30 dias, correndo o risco de fazer um mau anúncio. “A imagem do Brasil lá fora ficou melhor do que era antes. Até porque o mundo veio pra cá achando que seria um fracasso. A expectativa era muito negativa e não há motivo algum para sequer achar que beiramos o desastre”, defende.

Juca, contudo, lembra que o simples fato de os estrangeiros terem aprovado o megaevento não diz nada sobre o legado deixado para o país.  “Quem vai pagar as contas somos nós. Quem vai herdar os elefantes brancos [estádios gigantes em lugares com pouca tradição futebolística] somos nós. Quem vai ter que arcar com uma série de coisas que não foram feitas como deveriam somos nós.”

“Não se fala de esporte nos debates presidenciáveis”, lembra Juca. Para ele, o Brasil não deve pensar apenas no hexacampeonato mundial ou em produzir medalhistas olímpicos. “Cabe pensar o esporte como fator de saúde pública. Dados da Organização Mundial da Saúde revelam que a cada dólar investido em massificação da prática esportiva se poupa três dólares em saúde pública”, afirma. “Qualquer governante responsável deveria levar esse dado em conta para pensar o Brasil como um país que pratica esporte, e não que produz campeões. Afinal, é da massificação que você tira a produtividade de alto rendimento em um país com mais de 200 milhões de habitantes.”

Democracias incipientes

Antes de sua fala, o arquiteto João Whitaker esclareceu que o futebol não é sua especialidade – ele discute o legado da Copa pelo viés do urbanismo e também enxerga o prenúncio do desastre como um grande exagero. “O que vimos foi um grande espetáculo do capital, liderado e mediado por interesses privados de grandes corporações com uma relação extremamente perversa com o poder público”, dispara.

“Quando a FIFA (Federação Internacional de Futebol) e o COI (Comitê Olímpico Internacional) perceberam o mar de dinheiro que era possível atrair com megaeventos, se construiu um discurso e uma operação política para dizer que é impossível se fazer uma Copa do Mundo ou uma Olimpíada sem fazer uma série de ações visivelmente voltadas para o lucro preservado, protegido e fenomenal de alguns atores, que se dão o privilégio e a exclusividade de fazer intervenções que na verdade não são necessárias.”

Em sua memória, Whitaker passeia pelas Copas das décadas de 60 e 70 e pergunta: “precisa de tanto dinheiro para fazer uma Copa do Mundo? Será que isso tudo não está matando o futebol?” Os diversos níveis de governo gastaram mais de R$ 25 bilhões para realizar o torneio.

Para Juca, esse enorme montante que o megaevento faz girar é necessário para entender porque as últimas Copas do Mundo aconteceram em países subdesenvolvidos: África do Sul e Brasil (sendo que as próximas serão na Rússia e no Catar). “São democracias incipientes, de pouco controle social e de muita corrupção. A Grã-Bretanha candidatou-se à Copa de 2018 – e teve um voto. Por uma razão muito simples: se preciso, a Grã-Bretanha faria uma Copa do Mundo amanhã, em Londres, Manchester, Cardiff, Liverpool. Sem uma empreiteira, sem uma grande agência de propaganda para respaldá-la. É claro que isso não interessa.”

Plebiscito

Um dos motivos alegados pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, para a queda de 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre de 2014 foi a redução de dias úteis em função da Copa do Mundo. “Passaram anos falando que o evento ia suscitar tudo quanto é milagre para a recuperação econômica do país e terminaram o semestre dizendo que a estagnação do PIB é culpa da Copa. Então era tudo mentira”, exclama Whitaker. Segundo o arquiteto, se os resultados para a economia brasileira foram irrelevantes, não se pode dizer o mesmo no que diz respeito aos cofres das empreiteiras, construtoras, agências de propaganda e escritórios alemães que projetaram os estádios.

Um estudo da Fecomercio-SP (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo) previu que o Brasil perderia R$ 30 bilhões com os 64 feriados instituídos país afora (de acordo com os jogos em cada cidade-sede). “Hoteleiros e comerciários tiveram o pior junho e julho das últimas décadas, já que os congressos e convenções que normalmente acontecem nessa época não aconteceram. Até mesmo os lojistas da rua 25 de Março disseram não ter um junho tão ruim como esse nos últimos 15 anos”, relata Juca.

Whitaker vê como um exagero o papel do futebol para a interpretação dos problemas nacionais. “De certa forma é uma herança do que a ditadura militar quis construir. Precisamos entender que nossos traumas são outros”, aponta. “As reivindicações dos movimentos populares não se encerram com a final da Copa do Mundo, pois a educação pública do país continuará precária, e a falta de moradia crônica – assim como nossa polícia militar, que nunca é desmilitarizada. E isso não tem nada a ver com o futebol.”

Para o jornalista, toda a discussão acerca das heranças e consequências dos megaeventos deverá redundar em uma exigência de que a população seja ouvida antes de um país sediá-los. Já aconteceram plebiscitos em cidades como Estocolmo (Suécia), Munique (Alemanha), Cracóvia (Polônia), Davos e San Loritz (Suíça), nos quais prevaleceram os cidadãos que recusaram receber as Olimpíadas de Inverno de 2018 e 2022.

“Houvesse aqui um plebiscito sobre a Copa, acredito que mais de 90% aprovaria a ideia. Mas quem não ouviu a população brasileira pagou o ônus de ter que se virar sozinho”, observa. “Temos que ir além dos megaeventos: as pessoas deveriam ser consultadas antes de qualquer grande obra, como a hidrelétrica de Belo Monte.”

Política esportiva

O sociólogo Bernardo Buarque de Holanda cita a inexistência de uma política esportiva para o Brasil. “Na medida em que agências privadas acabam se sobrepondo às públicas, como a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), não temos nenhuma elaboração de estratégia para o futuro. Não pensamos na formação de jogadores e técnicos para fortalecer as bases de clubes no Brasil. Do ponto de vista da ausência de uma política esportiva, colhemos aquilo que plantamos.”

Whitaker vai até as origens do Estado brasileiro patrimonialista – no qual os objetivos públicos e particulares de quem domina a máquina estatal são imiscuídos – para explicar como isso contamina a política pública esportiva. “Precisamos rever a nossa concepção sobre a importância do Estado na estruturação das políticas brasileiras. É com muita urgência que precisamos resgatar isso.”

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