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publicado dia 8 de outubro de 2014

Nova Luz expõe vazio de políticas urbanas pensadas de cima para baixo

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Em três oportunidades, desde 2013, coletivos e movimentos sociais ocuparam os 85 mil metros quadrados de terras batidas e avermelhadas do antigo Terminal Rodoviário da Luz, no centro de São Paulo. O local foi escolhido para sediar a Copa Rebelde, um torneio de futebol com debates e atividades culturais. Em sua última edição, disputada em plena Copa do Mundo, uma palestra, animada pelos ventos do Ocupe Estelita, em Recife, ofereceu uma gama interessante de sonhos e desejos para os presentes. O que poderia ser feito com esse vácuo no coração de São Paulo?

O terreno desocupado pelo Nova Luz ocupado pela I Copa Rebelde.
O terreno desocupado pelo Nova Luz ocupado pela I Copa Rebelde.

O terreno vazio que circunda um posto do Corpo de Bombeiros está localizado em um terreno público desapropriado da família Frias (proprietários do grupo Folha) por 34 milhões de reais, em 2010. Demolido, tornou-se mais um foco de disputas urbanas da metrópole paulista.

Foram nas grades do velho terreno que surgiram os midiáticos barracos de moradores de rua, posteriormente desmontados pelo programa municipal “De Braços Abertos”, que trabalha redução de danos entre usuários de drogas.  Com a Sala São Paulo logo atrás, é também o espaço da cidade que protagoniza cenas de desocupação, prisões e arbitrariedades. Cercado por cortiços, velhos prédios, ocupações, pequenos bares e muita vida, a área materializa o coração da Cracolândia.

De lá até o Memorial da Resistência, seguindo para a Pinacoteca ou Museu da Língua Portuguesa, não faltam ofertas culturais nos arredores. O transporte é facilitado pela estação de metrô da Luz, a mais antiga e bela da cidade, ou ainda pelo trem da Júlio Prestes.  A céu aberto, uma galeria de estátuas brinda os frequentadores do Parque da Luz com o melhor da arte moderna e contemporânea. Apesar das infinitas opções, o local espera melancólico a aterrissagem de um disco voador com 1.500 vagas de estacionamento: o Complexo Cultural Luz.

Luz para todos?

Iniciado pelo então prefeito José Serra, em 2005, o Nova Luz era o mais ambicioso projeto de cultura do PSDB para o estado, que visava conceder 362 mil metros quadrados da região para incorporadoras da iniciativa privada que fariam uma repaginação da área com construção de equipamentos culturais e habitações sociais.

Desde 1995, quando o então governador Mário Covas inaugurou a Sala São Paulo, as gestões tucanas tentam “revitalizar” a área. O arquiteto e urbanista Arnaldo de Melo, que durante cinco anos estudou e vivenciou o cotidiano da região, acredita que as propostas seguem uma velha tendência de se “priorizar investidas de embelezamento para as classes mais abastadas antes de sanar problemas básicos de determinadas regiões da cidade”.

Em 2009, foi anunciado, por iniciativa do governo estadual, o Complexo Cultural Luz que, diante de diversos obstáculos, acabou congelado pelo governador Geraldo Alckmin em 2014, sob o temor de que o projeto pudesse ser visto como algo de “elite” em ano eleitoral e se tornasse alvo de protestos.

O receio do governador, no entanto, está longe de ser o único empecilho para a viabilização do projeto. Sem qualquer licitação, o governo do estado contratou o escritório de arquitetura suíço Herzog & De Meuron por 45 milhões de reais – e gastou mais 8 milhões com a Theather Projects Consultants no desenho do projeto que invadiria a região. A forma da contratação, sem concurso internacional, gerou protestos de associações de arquitetos e ações judiciais, que bloquearam a construção.

Ainda que paralisada, a empreitada artística continuou a consumir recursos. As desapropriações e demolições da área custaram aos cofres públicos 65 milhões de reais. Se levado adiante, consumiriam outras dezenas de milhões, segundo Arnaldo de Melo, para remover e erguer um novo prédio para os Bombeiros. E mais 600 milhões, ao menos, para a construção do complexo de 85 mil metros quadrados.

O projeto do Complexo Cultural Nova Luz segundo o escritório Herzog & de Meuron
O projeto do Complexo Cultural Luz segundo o escritório Herzog & De Meuron.

“Entre o que juntei de dados de placas de demolição, dados publicados em jornais e revistas e no Diário Oficial, o Teatro de Dança poderia custar mais de 1 bilhão de reais. Com essa grana dava para resolver a questão da Cracolândia, da habitação social na área e ainda sobraria”, projeta o urbanista.

Interesse social

O projeto Nova Luz, no entanto, ia além do terreno da antiga rodoviária, englobando, com a construção de escolas de músicas e teatros, um entorno de 53 quadras, num perímetro que vai da rua Mauá até a Avenida São João, de norte a sul; e da Avenida Ipiranga até a Avenida Duque de Caxias, de leste à oeste. Onze desses quarteirões integram uma Zona Especial de Interesse Social 3 (ZEIS-3), uma definição de planejamento urbano que destina áreas para moradia social.

Foi lá que surgiu o primeiro Conselho Gestor (CG) de uma ZEIS, composta por comerciantes, moradores, movimentos sociais e moradores da região. Com reuniões regulares e organização, o CG conseguiu ser reconhecido pela Justiça. E avançou também em uma exigência básica da legislação: que a prefeitura e o governo escutem a população local, através de um processo participativo, em transformações de grande porte nos bairros da cidade. No caso da Nova Luz, a juíza Alexandra Fuchs considerou que a gestão democrática da cidade não foi garantida e anulou o que vinha sendo chamado de processo participativo. 

A ideia original para o projeto, preconizada pela gestão Gilberto Kassab, eram as concessões urbanísticas – parcerias público-privadas – que transferiam para as empreiteiras e construtoras o poder de realizar desapropriações e escolher as áreas que seriam desapropriadas, com uma contrapartida em obras públicas.

“Se deixar na mão da iniciativa privada para fazer remoções e construir teatros, como o governo tentou e tenta fazer,  você não tem mais nenhum pobre, um cortiço, um resto de vida da Santa Ifigênia. É como fizeram na Barra Funda, que ficou publicitariamente conhecida como Jardim das Perdizes. Por que ‘Nova Luz’ se é um dos bairros mais antigos da cidade? Isso é esperteza imobiliária para fazer gentrificação na área. Os equipamentos culturais não passam de iscas nesse cardápio da especulação”, analisa.

Velha luz

O bairro escolhido para ser a Nova Luz é um dos mais antigos e complexos da cidade, com mais de 200 anos. Quando a cidade começou a transpor a colina histórica (Sé – Pátio do Colégio), a Santa Ifigênia floresceu por conta das linhas de trem e conexões viárias que abrigava.

O caráter “de passagem” conferiu à região uma ocupação mista, policlassista e heterogênea. Entre as mais de 50 pastas que juntou com recortes de jornais e documentos históricos para a realização do doutorado, Arnaldo percebeu que a “Velha Luz” congregava imigrantes, trabalhadores do café, proprietários de terras em trânsito. “Temos alguns sobrados muito lindos daquela época, construídos pela elite. Além disso, sempre houve uma ocupação no ‘vai-como-dá’ das populações mais pobres em busca de sobrevivência ao lado dos hotéis de luxo”.

Nos anos 60 e 70, a região entrou em processo de degradação e esvaziamento e passou a ser chamada de Boca do Lixo. Nas últimas décadas, no entanto, converteu-se em um dos principais pólos comerciais de eletrônicos da cidade e a segunda maior arrecadação de ICMS do Estado de São Paulo. Entre produtos piratas, lojas legalizadas, ocupações e cortiços, a Santa Ifigênia continua sendo um centro dentro do centro, uma amálgama de distintos.

Cortiço na região da Luz.
Cortiço na região da Luz.

“Não é por bairrismo que eles se levantaram para defender o bairro. É uma questão de identidade mesmo”, comenta o arquiteto, que gostaria de ver investimentos reais na região. “Como gastar mais de um bilhão para construir um equipamento pra gente bacana? Vamos recomeçar da estaca zero com participação popular, construir habitação, reformar”.

E o que pode ser feito naquele espaço já desapropriado e devidamente cercado? “Acho que isso cabe ao povo de lá decidir. Mas poderíamos ter parques, banheiros públicos, quadras poliesportivas, escolas, habitações sociais. Existem diversos usos mistos que poderiam transformar a região sem excluir ninguém”, conclui, lembrando das tardes de domingo da Copa Rebelde.

Em tempo: A assessoria da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo declarou ao jornal O Estado de S. Paulo, em março deste ano, que não houve nenhuma decisão de abandonar o projeto e que aguarda  investimentos da iniciativa privada para ser concluído.

 

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