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publicado dia 23 de dezembro de 2014

Porque Ferguson está em estado de emergência há anos

por

Sarah Kendzior
Publicado originalmente no site Quartz e traduzido pelo Portal Aprendiz.

Em 17 de novembro, o governador Jay Nixon emitiu uma ordem executiva que colocava o Missouri em um “estado de emergência”. A natureza de tal emergência era pouco clara. Na ordem, Nixon citou “a possibilidade de revoltas” e a necessidade de “garantir a segurança pública”. O que é ainda menos claro é quem é considerado, no Missouri, uma ameaça e quem precisa de proteção.

Sarah Kendzior é jornalista e pesquisadora residente em St. Louis, Missouri, EUA. Escreve periodicamente para Al Jazeera e para o Chronicle of Higher Education. Pode ser encontrada no @sarahkendzior.

Por mais de cem dias, manifestantes se reuniram pela área metropolitana de St. Louis – capital do estado – para pedir a condenação de Darren Wilson, o policial que matou o adolescente de Ferguson, Michael Brown, e o fim da violência contra a população negra. A maior parte dos manifestantes não esteve envolvida em qualquer violência. Pilhagem e incêndio – duas das principais reclamações da mídia  – aconteceram majoritariamente ao longo de alguns dias em agosto.

A vida seguiu para os habitantes de St. Louis, com uma mudança: a ansiedade incapacitante e o pânico que proclamações de violência iminente instalaram na população. Todo dia um veículo de informação diferente transmite um alerta falso, levando a reações em pânico das pessoas e autoridades.

Assim é um dia típico para os residentes de St. Louis: você acorda com a notícia – do trabalho, da escola de seus filhos – sobre “procedimentos de emergência” para um desastre iminente e inespecífico. Autoridades locais lhe dizem para fazer estoques de água e encher seu tanque de gasolina. Sua criança é mandada para casa com lição de casa extra, caso as aulas sejam canceladas por “perturbações da ordem”. Creches dizem que seu filho de três anos está participando de “treinamentos de emergência” e ninguém dirá para que tipo de emergência.

Na estrada você cruza um comboio com equipamento militar. Você vê algo que parece um tanque na padaria. Você observa uma frota de veículos do Departamento de Segurança Nacional em um hotel e um acampamento de soldados da Guarda Nacional atrás de um mercadinho. Visões mundanas são militarizadas, feitas ameaçadoras por associação.

Conforme você passa por prédios tapados com tapumes, veículos militares e longas filas de cidadãos querendo comprar armamento, a cidade e as autoridades têm uma mensagem: “fique calmo”. Em uma coletiva de imprensa logo após Nixon declarar estado de emergência, o prefeito de St. Louis, Francis Slay, criticaram os habitantes da cidade por sua “histeria”. “Respire fundo, afaste-se e se acalme”, proclamou, enquanto um contingente de 1000 policiais e 100 agentes do FBI chegavam a St. Louis. Se acalmem, eles dizem, enquanto tudo ao seu redor lhe diz o contrário.

Desde o começo, Ferguson tem sido um exemplo de paranoia e cultura do medo. A geografia de St. Louis é talhada por questões raciais, e as ações de Wilson são a evidência trágica dessa política. Brown, desarmado, foi reconhecido como uma ameaça por ser um grande adolescente negro. Não havia razão racional para vê-lo como uma ameaça letal. Não havia necessidade de responder a uma comunidade em luto com armamento, combater lágrimas com gás lacrimogênio.

Todos os movimentos feitos por policiais de St. Louis nos últimos meses estiveram arraigados na defensividade que causa pânico nos residentes, o que, por sua vez, aumenta o pânico entre os baixos escalões da polícia, que soltam alertas de pânico para os cidadãos. Ferguson é uma cobra mordendo o próprio o rabo de irracionalidade incongruente.

Enquanto Nixon e outras autoridades públicas não identificam a natureza da ameaça iminente, eles são bastante claros sobre o que está sendo ameaçado. A brutalidade policial é justificada pela “segurança pública” e para proteger “lares e negócios”. É uma alegação difícil de engolir dado que, em muitas partes de St. Louis, o “público” luta para sobreviver em meio à pobreza e lares e negócios estão em ruínas.

A existência de moradores em situação de rua é um sério problema no condado de St. Louis, que não possui sequer um albergue, e na cidade, onde a pressão causou o fechamento de um abrigo proeminente. Essas ameaças reais para a segurança do cidadão são ignoradas. Se proteger os vulneráveis de St. Louis fosse uma real preocupação, Nixon haveria proclamado o “estado de emergência” há muito tempo.

O “estado de emergência” atual é um remanescente da cultura do medo do pós-9/11, quando os americanos estavam constantemente em “alerta laranja”. Foi uma era de pânico histérico, sobre catástrofes inventadas, como as “armas de destruição em massa” do Iraque e confortos falsos sobre catástrofes reais, como a bolha da economia. Americanos pagam hoje o preço das prioridades caducas de Bush, e St. Louis pagará o preço de sua própria paranoia nos meses vindouros. Enquanto escolas empobrecidas do North County lutam para se manter abertas, a mesma polícia que atacou os habitantes de lá recebe centenas de milhares de dólares para comprar equipamentos “anti-distúrbios”.

As tensões estão em alta em St. Louis e o oportunismo, como em qualquer tempo de crise, abunda. Seria imprudente presumir que a violência e o dano à propriedade não voltarão a ocorrer após a decisão do juri [a decisão do juri inocentando Darren Wilson saiu em 27/11 deste ano]. Mas o grande pânico em St. Louis é, neste momento, ele mesmo. O medo levou a uma população raivosa e armada, interrupção da vida das crianças, gastos policiais inflados e trauma emocional nos cidadãos.

No Missouri, estados de emergência geralmente são declarados para eventos climáticos, como tornados. Mas afro-americanos pedindo por justiça não é um desastre natural, e as tragédias de St. Louis são feitas pelo homem. O desejo de que os protestos parem e que as coisas voltem ao “normal” esquecem que o “normal” é o que causou os protestos em primeiro lugar. “Normal” significa pobreza e brutalidade aguentadas de forma desproporcional pela população negra do Estado. Em St. Louis, o estado de mergência é o status quo, mas o status quo sempre foi um estado de emergência, um estado de coisas que permanece sem remédio.

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