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publicado dia 27 de outubro de 2015

Uma cidade para crianças é uma cidade para todos

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Uma grande parte das crianças brasileiras está privada de direitos fundamentais e, por isso, adoece. A outra parte vive enclausurada, institucionalizada, medicalizada e, portanto, adoecida. Em meio a isso, os adultos não andam lá muito saudáveis. Essa é a opinião do pediatra Daniel Becker, que abriu o seminário “Relação Criança e Cidade: uma via de mão dupla”, ocorrido nesta segunda-feira, na região central de São Paulo.

“A família brasileira não vai a parques, vai ao shopping. Temos uma publicidade irresponsável, covarde, que se vale do amor das crianças à fantasia para vender comida tóxica. Somos o segundo país que mais dá Ritalina (remédio indicado para transtorno de atenção) para crianças. Elas dormem mal, se rebelam, comem demais, perdem atenção, enfim, começam a ter sintomas. Elas estão apenas reagindo ao horror que lhes ofertamos”, provocou Becker. Em seguida, fez um pedido à plateia: fechem os olhos e imaginem como é o lugar que gostariam de brincar com os seus filhos.

Quando a plateia abriu os olhos, estavam projetadas as palavras “parque, floresta, jardim, praça, ruas arborizadas”. “Foi isso que vocês imaginaram, não? É porque somos seres naturais ainda”, defendeu o médico. “E esses são elementos que nos tornam saudáveis em uma cidade: natureza. Mas não só isso. Precisamos ter também espaço público aberto, transporte público de qualidade, arte, cultura, moradia, saneamento básico, trabalho e renda digna”, diagnosticou.

Ampliar escutas

Mas como construir essa cidade prescrita pelo médico? Uma socióloga começa a encontrar caminhos possíveis em uma região de bastante vulnerabilidade no centro de São Paulo: o Glicério. Escondido por viadutos e esquecido pelas políticas públicas, o bairro abriga diversos cortiços, onde dezenas de família vivem, do jeito que podem. Foi lá que Nayana Brettas foi ouvir as crianças.

Fundadora do “Criança Fala: Escuta Glicério” – uma iniciativa do Criacidade, com apoio da São Paulo Carinhosa -, Nayana defende que, para alcançar uma cidade mais criativa, democrática e brincante, é necessário reconhecer as crianças como cidadãs. Para isso, o projeto realiza uma escuta cuidadosa de meninos e meninas que visa assegurar a participação deles na elaboração de políticas públicas, projetos arquitetônicos e na transformação do espaço público. “Quando você ouve uma criança, você ativa uma rede de colaboradores que irão construir uma cidade mais humanizada e brincante. Quando você vê, a comunidade inteira está caminhando”, relatou.

Dentro de oito cortiços e abrindo os ouvidos para 98 crianças de 0 a 8 anos, ela descobriu que, mais do que espaços públicos, era necessário garantir banheiros para que as crianças pudessem ficar sozinhas e se olhar no espelho, “desenvolvendo sua individualidade”. Para contornar essa situação, em um dos cortiços, um quarto abandonado foi limpo e se converteu em um espaço das crianças.

“Nós trabalhamos com a transformação dos espaços nos cortiços, formação interdisciplinar com agentes de saúde e educadores, e atuamos diretamente nas escolas e comunidades para ressignificar os espaços públicos. Uma vez por mês sai um cortejo de maracatu na região que coloca literalmente a criançada na rua”, revelou.

Entre slides que mostram espaços urbanos que passaram a ser grafitados com desenhos infantis, paredes consertadas com blocos de lego e postes lambidos com sonhos das crianças, Nayana contou que o Criança Fala propõe percursos que passam por conhecer, construir, refletir, empoderar, formar, fazer acontecer e celebrar. “Esperamos que isso que estamos desenvolvendo no Glicério possa ser uma política pública para toda a cidade.”

Aprender com a Cidade

A violência gera medo. O medo faz subir muros que, por sua vez, produzem violência. Esse é o ciclo que precisa ser quebrado nas cidades brasileiras, segundo José Armênio Brito Cruz, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil de São Paulo (IAB-SP).

“A urbanização brasileira se expandiu enormemente nas últimas décadas. Mas o Estado abandonou esse planejamento. A urbanização brasileira, do empreiteiro ao cara que junta 10 reais por mês para comprar tijolo, sempre teve um traço privado”, diagnosticou. Para ele, esse tipo de processo ampara fenômenos geradores de desigualdade e deixa o que é público de escanteio.

“O espaço público é um lugar de conflito. Mas é um espaço de aprendizagem, de solidariedade, de encontro, de compartilhamento. A cidade é o espaço público: rua, calçada, esquina, fachada, equipamentos culturais, praças e parques. É isso que nós – e as crianças – identificamos como cidade”, defendeu.

Em um momento em que anuncia-se, de maneira unilateral, o fechamento de 94 escolas em São Paulo, pelo governador Geraldo Alckimin, Cruz  lembrou, sem citar o caso, das consequências desses remanejos urbanos. Para mostrar que a cidade educa, ele mostrou uma foto da Praça da República, no centro de São Paulo.

Aquele espaço que, visto de cima, parece um oásis verde no deserto de pedra, foi pensado ainda no final do Império para receber uma nova catedral. Com a proclamação da República, em 1889, optaram por abrir uma escola no local, um espaço que abraçaria todo o ideal positivista vigente na época. Foi assim que nasceu a Escola Normal Caetano de Campos, conhecida por ter abrigado Mário de Andrade, Sergio Buarque de Holanda, Oswald de Andrade, Cecília Meireles, entre outros. Sua desativação, em 1978, foi resultado da inauguração da linha Leste-Oeste do metrô paulistano. Paulatinamente, as crianças que ocupavam a praça foram dando lugar ao vazio.

“Imaginem se o metrô fosse usado por estudantes? Se aquele prédio antigo ainda abrigasse estudantes, que se espalhariam pelos bosques da praça durante o dia. Será que ela seria o que é hoje?”, questionou.

Para Luiz Brettas, da SP Urbanismo, uma empresa pública que desenvolve ações governamentais voltadas ao planejamento urbano de São Paulo, não há dúvidas de que seria diferente: “Uma cidade para crianças é uma cidade para todos. E é para isso que temos trabalhado nos últimos anos”, afirmou. Brettas é responsável pelos projetos de ativação do espaço público que vêm sendo testados na gestão de Fernando Haddad, entre eles, os Parklets e o Centro Aberto, além de mudanças que estimulam os pedestres a retomarem a cidade.

Criança que vive a cidade, adulto que a transforma

No começo de 2015, o vídeo “Caminhando com Tim Tim” viralizou na internet. Ele mostra o caminho que Valentim, à época com 2 anos, fazia entre a casa da mãe e da avó e as interações que ele tinha com os passantes, com o espaço público e com a cidade. Esse foi o suporte que Beatriz Cardoso, diretora do Laboratório de Educação, usou para falar sobre a necessidade de ligarmos a infância com a urbe.

“O que aprendemos na infância diz muito sobre o cidadão que seremos. Se a criança tem direitos, ela irá respeitar os direitos. O futuro é a síntese das experiência que a criança pode ter. Temos que lembrar o tempo inteiro que, conectando a criança com o bairro, familiarizando-a com o espaço público, ela vai querer mudar o mundo do qual faz parte.”

As afirmações de Beatriz são amparadas pela pesquisa “O impacto do desenvolvimento na primeira infância sobre a aprendizagem”, produzida pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), que reúne especialistas de Harvard, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. O estudo concluiu que as experiências ocorridas nessa fase terão influência ao longo de toda a vida do indivíduo – seja na saúde, seja no seu bem-estar social, emocional e cognitivo. E, por que não, na vida em sociedade?

“Todos os espaços que destinamos às crianças são controlados e de baixa diversidade. Por que não pensar contextos em que convidemos a criança a se aventurar um pouco? A trabalhar a emoção e o medo, e aprender a observar, interagir? Que espaços inusitados da cidade podem ser entendidos como locais de aprendizagem? Já passou da hora de entender a infância como uma categoria usuária da cidade”, concluiu.

 

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