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publicado dia 12 de agosto de 2016

Pioneira da arte-educação, Ana Mae Barbosa reforça: “Todo artista tem o que ensinar”

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“O artista acha que, por si só, não ensina. Ele acha que não consegue estabelecer essa relação. Mas, necessariamente, por ser artista, ele tem o que ensinar. É preciso ter desejo de ensinar, mas no Brasil, infelizmente, há um desprezo por nossa educação pública, que acaba convertendo-se em uma instituição que vai formar apenas capacidades empregatícias de nosso povo, deixando todo o resto de lado”, interrompeu Ana Mae Barbosa, enquanto era agraciada com o Prêmio Ícone da Educação, concedido pelo Istituto Europeo di Design (IED São Paulo), durante a Design Weekend (DW!). O evento aconteceu na noite desta quarta-feira (11/8), no bairro de Higienópolis, em São Paulo.

Com 80 anos recém-completos, Ana Mae é uma pensadora afiada da educação brasileira. Responsável por elaborar a Abordagem Triangular (conhecer a história, fazer arte e saber apreciar uma obra), que trazia elementos da teoria freiriana para pensar o ensino de arte, ela foi uma das fundadoras da arte-educação no Brasil e é amplamente referenciada em escolas, museus e faculdades de pedagogia no país, na América Latina e no mundo.

Após receber o prêmio, a educadora pernambucana também proferiu a aula magna da Design Weekend. Nela, tratou de sua “aflição de pesquisa”, traduzida na apresentação “Redesenhando o desenho: educadores, política e história” e contou um pouco da história do ensino de arte no Brasil.

Ana Mae durante sua aula magna.
Ana Mae durante sua aula magna.

No começo, o processo foi capitaneado por Rui Barbosa, no que ela denominou de “Virada Industrial”. Nesse período, os pensadores mais liberais do país tentaram levar o desenho para a escola primária e secundária. A “Virada Modernista”, dos anos 20 em diante, bebeu dessa fonte e propôs cada vez mais liberdade expressiva para os alunos. Os esforços da Escola Nova, trazida por Rui Barbosa e continuada por Anisio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Cecília Meireles e Armanda Álvaro Alberto, buscavam uma maior autonomia dos estudantes e uma conexão direta da educação com os problemas do país.

Ana Mae relembra que foi na Escola Nova que “as crianças começaram a plantar horta, a respeitar a natureza, a aprender fazendo, tudo isso que a gente vê até hoje”. “Naquela época, se brigava por educação nos jornais, havia muitas discussões teóricas. A proposta radical era que o pobre tem que fazer arte, tem que ter o direito de filosofar. E esse experimento foi interrompido por uma perseguição enorme contra os educadores, que forçou muitos deles ao exílio, acusando-os de comunistas”, afirmou, mostrando a foto de um delegado responsável por fiscalizar “a doutrinação comunista nas escolas”.

Qualquer semelhança com o movimento Escola Sem Partido não é coincidência.

A poeta Cecília Meireles, que também foi educadora, foi vítima dessa perseguição. Ela dirigia o Pavilhão Mourisco, um espaço de arte e cultura no Rio de Janeiro que foi invadido pela polícia em 1937, sob a acusação de portar livros comunistas. Saíram com um exemplar de Tom Sawyer, de Mark Twain. “A história é como um estilingue”, lembrou Ana Mae, citando Aloísio Magalhães, “quanto mais fundo você puxa, mais fundo você alcança”.

Ainda mapeando a história da arte-educação, Ana Mae lembrou da experiência das “Escuelas de Pintura Al Aire Libre” surgidas no México, após a revolução de 1910. Levadas adiantes por José Vasconcelos, filosofo e educador, as mais de 13 escolas de arte eram voltadas principalmente para jovens indígenas. “Eles juntavam um monte de gente, montavam cavaletes, davam tintas e papel para crianças e saíam para pintar nas ruas, praças, parques e cidades, propondo uma livre expressão baseada em elementos da gramática visual mexicana”, relata Ana Mae, uma das únicas pesquisadoras mundiais que se debruçou sobre essa experiência educacional, responsável por influenciar até o surgimento da renomada escola muralista mexicana.

“Eles juntavam um monte de gente, montavam cavaletes, davam tintas e papel para crianças e saíam para pintar nas ruas”

“Pouca gente pesquisa esse tema e sempre me chamam no México para falar a respeito dessas experiências que, no começo do século passado, ensinavam arte para crianças com pés descalços, que estavam ligadas à sobrevivência do pobre e do índio, que se preocupavam com seu desenvolvimento e que não estavam ligadas a nenhuma instituição coercitiva com regras e restrições, apenas tinha em seu método educativo a necessidade de fazer a criança se identificar com seu mundo.”

Após duas horas de prosa, a educadora comentou o crescimento da ideia de arte-educação no Brasil, que ganhou os bancos da academia, dos museus e equipamentos culturais do país. Agora, defende ela, é hora de batalhar para que o direito à arte se efetive, buscando cada vez mais potências interdisciplinares, que congreguem conteúdos diversos e abram espaço para o desenvolvimento criativo das crianças e adolescentes brasileiras.

Para desenvolver algumas dessas ideias, o Portal Aprendiz entrevistou a educadora logo após a palestra e debateu a perseguição ideológica na educação, o ensino de arte e a importância de mudar os “códigos” da arte no país. Confira.

Portal Aprendiz: A senhora comentou que, durante a década de 30, houve uma grande perseguição aos educadores da Escola Nova, com o exílio de Anísio Teixeira, prisão de professores e até um inspetor designado para “examinar a doutrinação comunista”. Atualmente, o projeto “Escola Sem Partido” se arvora na mesma paranoia. Como você vê esse retorno? Como se pode pensar o ensino de arte nessa conjuntura?

Ana Mae Barbosa: Ah, isso é pavoroso. Temos que pensar que a arte, e nós da arte, somos a resistência. Nem governo de direita, nem de esquerda, privilegiam a arte ou sequer dão condições para seu desenvolvimento. A arte é inimiga do poder. Então, você está em vigília cívica permanentemente, lutando permanentemente, brigando permanentemente. Eu anunciei há dez anos que iria aposentar o meu lado de ativista política, falei não para convites políticos porque já tinha batalhado muito. Já tive muitas alegrias, mas muitas tristezas também. Não conquistei metade do que eu gostaria para a arte das escolas e falei: “bom, tô saindo”.

Eis que me pego, no ano passado, fazendo “spots” contra a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) porque eles tinham colocado artes como subcomponentes curriculares que poderiam ser ensinados por qualquer disciplina. Eu não sou contra, por exemplo, o professor literatura dar uma aula sobre foco narrativo e depois mostrar um quadro do Velázquez. E o quadro do Velázquez, de fato, é um tratado de foco narrativo, pois você não sabe se quem narra é o pintor, o casal de reis retratado, a menina ao centro, você não sabe qual é o foco. É uma aula excelente para um professor de literatura e eu sou a favor que ele use a arte visual horizontalmente no currículo e que todo mundo que quiser se apropriar, se aproprie.

O quadro "Las Meninas", do espanhol Diego Velázquez
O quadro “Las Meninas”, do espanhol Diego Velázquez

Agora não é só isso que fará com que o aluno possa desenvolver seu processo criador, sua percepção visual, não tem nenhuma disciplina no currículo que possa dar conta disso, só a arte. Então a arte precisa ser colocada verticalmente no currículo. Se for por economia, acho que até o aluno pode escolher entre artes visuais, teatro ou dança, eu chego até aí, mas nunca a falta de uma verticalidade em arte.

Aprendiz: De fato, a conquista da educação em artes foi uma longa batalha e avançou muito para simplesmente se abrir mão.

Ana Mae: Dá medo. Nós tivemos um avanço enorme com mestrados e doutorados, com produção acadêmica, os vários livros. Houve um tempo em que só tinha um livro, que era o meu, o “Teoria e Prática da Educação Artística”, que eu até tirei do mercado assim que publiquei outros – não porque fosse ruim, mas porque eu fiquei enjoada [risos]. Mas, agora não, existe uma ampla bibliografia, a internet tem muita coisa disponível, muitas informações.

O que você tem que desenvolver é a capacidade de selecionar as coisas e isso não é fácil. O Rudolf Arnheim [psicólogo behaviorista] dizia que a criatividade, o processo criativo, começa pela seletividade. Por isso, ele era contra o desenho de observação, de você colocar flores e frutas na mesa e pedir para as crianças desenharem. Ele era contra isso. Você poda o primeiro alicerce que é a capacidade de selecionar. Quer que desenhe flores? Vá para o jardim e diga: “escolha”. A seleção do sujeito é o primeiro passo para o desenvolvimento criador. Com a internet, isso é mais importante do que nunca. O autodidatismo, que deveria florescer, esbarra nisso, porque você precisa de uma teoria para construir valores e, dentro desses valores, escolher o que você quer.

Aprendiz: A senhora fala em algumas entrevistas que enxerga na educação integral, na ampliação de tempos na escola, um grande potencial para desenvolvermos uma educação artística de qualidade. Como ele pode ser bem aproveitado?

Ana Mae: Eu achava que a educação integral era a solução, porque ia ter um foco muito grande em esporte e em arte – e acho ambos essenciais. O esporte pode dar vazão a essas energias corpóreas, uma vez que considero que as crianças brasileiras ainda são muito agredidas em suas vidas cotidianas, inclusive fisicamente, o que é uma violência enorme, e o esporte, com suas regras, cria espaços de respeito pelo outro.

A arte também participa dessa campanha de não-violência, porque ela dá ferramentas para a expressão de subjetividades. Uma vez eu vi uma escola, em uma zona muito agressiva, e só tinha desenho de florzinha, de coisinha, depois de umas três ou quatro visitas, a professora ficou minha amiga e me disse que tinha sim desenhos de outras coisas, mas a diretora não queria que mostrasse a ninguém. O fato de ter esses desenhos, de temas duros, é bom porque significa que a criança não está produzindo para o olhar de ninguém além do dela, que ela está fazendo arte e se expressando. O triste é que a escola esconde isso para não parecer uma escola violenta.

Aprendiz: Nesse aspecto, de expressão infantil e de movimentar corpos e saberes, me chamou muita atenção a experiência do México das Escuelas Al Aire Libre. Você poderia desenvolver um pouco as ideias dessa experiência?

Ana Mae: Elas são fantásticas. Foram experiências muito heterogêneas. Essas escolas funcionavam desde o nível universitário, que até hoje funciona como a La Esmeralda, até para crianças, em cinco ou seis bairros pobres e havia uma em um bairro rico. A ideia era atrair a população pobre, o índio, porque os lutadores da revolução tinham um grande respeito ao indígena, ao oprimido, que até então eram completamente esquecidos. E essa era a ideia deles: liberdade de expressão para o povo e eles conseguiam isso, provavam que as crianças eram livres quando, a partir de um mesmo objeto de observação, como uma igreja, despertava muitos desenhos diferentes. Tinha muita ênfase na diferença.

Garotos de pés descalços em uma das poucas fotos remanescentes das Escuelas.
Garotos de pés descalços em uma das poucas fotos remanescentes das Escuelas.

Aprendiz: E elas funcionavam nos parques, nas praças?

Ana Mae: No começo era assim. A de Xochimilco, na Cidade do México (ver foto acima), era bem aberta. Elas inclusive influenciaram os parques infantis do Mário de Andrade. Eu sei que o Mário assinava as revistas da época que retratavam os parques, mas nunca consegui me aprofundar nisso, mas seria bom alguém estudar a relação entre ele e as “Escuelas”. Vale citar também que o nome da escola da Armanda Álvaro Aberto, em São João do Meriti, no Rio de Janeiro, era Escola ao Ar Livre e isso não é coincidência. As coisas passearam por aí.

Aprendiz: Nós trabalhamos com a temática da Cidade Educadora, que aposta que a cidade é plena de potenciais educativos. De que maneira a abordagem triangular, que você formulou, pode dialogar com esse conceito?

“O único código aceito pelos museus é o europeu e o norte-americano branco”.

Ana Mae: Eu acho que são duas coisas que dialogam muito. Botar um monte de criança na rua é mais difícil e precisa de coragem, mas com os adolescentes já dá para sair o tempo inteiro. A partir disso, é possível observar a arquitetura da cidade, como era a arte e a cultura da época e construir leituras da cidade, do sair da escola. A gente tem que levar para fora da escola os estudantes o máximo que puder, mesmo com a questão da locomoção sendo sempre o grande impeditivo.

É pena que os museus sejam tão caretas, tão europeus demais, tão europeizantes. O único código aceito pelos museus é o europeu e o norte-americano branco. Cadê o código indígena? O código negro? Fica tudo separado em museus específicos. O ideal era quebrar essas barreiras, mas copiamos o modelo americano de separação, de ter o museu das mulheres, o museu afro, o museu latino, mas todo mundo quer expor no MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque). O valor acaba sendo o branco. Eu não sei como resolver isso, dirigi o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) por sete anos, tentei fazer uma política multicultural e fui execrada por todo mundo, queriam me pegar pelo pescoço. A minha direção foi extraordinária pelo educativo, mas teve esse lado que ninguém viu e nem quer ver.

(A foto que ilustra essa matéria é de Domenico Trocino, da página pessoal de Ana Mae Barbosa)

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