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publicado dia 28 de setembro de 2018

Como os direitos humanos são entendidos no Brasil?

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Acordar pela manhã e tomar banho. Ter dinheiro para comprar pão antes de pegar o ônibus no caminho ao trabalho. Ir ao cinema e voltar para casa em segurança. Nessas cenas cotidianas estão esparramados uma série de direitos humanos, aos quais todo e toda brasileira têm acesso constitucionalmente: o direito à moradia, à saúde, ao trabalho, à cultura, e sobretudo, o direito à vida e à liberdade de vivê-la como se deseja.

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Ainda assim, quando se pergunta à população brasileira sua percepção sobre direitos humanos, o imaginário é outro, relacionando-os pouco aos direitos sociais garantidos pela Constituição e mais à segurança pública. Segundo pesquisa lançada pela Ipsos em 2018, 54% das pessoas não se veem defendidas pelos direitos humanos; 66% acreditam que direitos humanos defendem mais criminosos do que suas vítimas; e há ainda 21% da população que se dizem contrárias os direitos humanos.

Se é na falta de informação que proliferam malogradas concepção de direitos humanos, essa disputa pela conceitualização da expressão se acirra ainda mais em períodos eleitorais. Este de 2018 não parece ser diferente, ainda mais se levada em conta a forte polarização política e ideológica na qual o Brasil se encontra.

O que são, afinal, direitos humanos?

Para compreender o que são direitos humanos, é necessário recorrer à sua primeira utilização no campo do direito internacional: a Declaração Universal de Direitos Humanos, criada em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU). “Ela surge principalmente como resultado da grande violência cometida durante as guerras mundiais, expressando comportamentos, direitos e cuidados, onde o ser humano foi colocado como centro das atenções das políticas públicas, que deveriam construir o bem-estar social da humanidade”, relembra Rogério Sottili, diretor do Instituto Vladimir Herzog e ex-secretário nacional de direitos humanos.

Figuram nos 30 artigos desta declaração direitos múltiplos, que partem do direito à vida como princípio: direito à liberdade, à liberdade religiosa, de não ser torturado ou submetido a tratamentos cruéis, direito ao trabalho, ao lazer e à cultura.

Assegurar direitos igualitários em uma nação de profundas desigualdades sociais é desafiar não somente uma violência histórica, como também a reverberação desse passado no modo como o sujeito brasileiro enxerga – ou não enxerga – o seu semelhante

O Brasil é considerado referência internacional em legislação de direitos humanos. Signatário dos principais tratados internacionais, o país também é inovador por ter incorporado, em sua última e vigente Constituição, os direitos humanos – que trata como sociais – no primeiro capítulo do texto. “Esse capítulo já dá o tom de qual será o centro das preocupações da nossa Carta Magna: o ser humano e os seus direitos”, recorda Rogério.

O processo de redemocratização, para o especialista, é a síntese dessa conquista: foi o sinal de que o país não toleraria retrocessos como os períodos ditatoriais, onde o cidadão não era visto como sujeito de direito: “Direitos humanos no Brasil é uma expressão de lutas, conquistas e avanços contra um agenda conservadora, velha e retrógrada.”

 San Romanelli, pesquisadora em teoria política normativa, acrescenta: “São os direitos que as pessoas possuem simplesmente por serem humanas, independentemente de gênero, sexualidade, classe social, etnia ou país de nascimento”.

Para ambos entrevistados, a dificuldade do Brasil, assim como de outras democracias, não é a de reconhecer os direitos humanos, e sim de implementá-los. Isto porque assegurar direitos igualitários em uma nação de profundas desigualdades sociais é desafiar não somente uma violência histórica, como também a reverberação desse passado no modo como o sujeito brasileiro enxerga – ou não enxerga – o seu semelhante enquanto sujeito de direito.

Direitos humanos e a naturalização da violência no Brasil

Em entrevista para a plataforma Cidades Educadoras sobre a Constituição de 88, o historiador Mario Sergio Andrade chamou-a de Constituição “meia cidadã”. Embora progressista, a Carta Magna também é fruto de conciliações e concessões, e os direitos sociais nela expressos são mais assegurados para algumas parcelas da população do que para outras, já histórica e socialmente prejudicadas.

“Nosso país foi fundado em violência. Suas bases são o genocídio indígena, três séculos de escravidão, dois processos de ditadura militar e mais, recentemente, um atentado à democracia, que foi o processo de golpe contra a presidenta eleita Dilma Rousseff”, declara Sottili.

Embora essa violência seja combatida pela Constituição, faz apenas 30 anos que se começaram a punir crimes largamente praticados no Brasil como a tortura ou o racismo, e eles ainda estão impregnados no imaginário brasileiro.

“Há um processo de naturalização desta violência. Nunca se fez a lição de casa dos direitos humanos para enfrentar essa história, nunca se apurou a responsabilidade sobre todos os processos violentos existentes no país. Pior do que isso, há certa homenagem aos responsáveis. Damos a eles nomes de ruas, escolas e museus”, complementa o ex-secretário.

“Nunca se fez a lição de casa dos direitos humanos para enfrentar essa história, nunca se apurou a responsabilidade sobre todos os processos violentos existentes no país. Pior do que isso, há certa homenagem aos responsáveis. Damos a eles nomes de ruas, escolas e museus”

Para San, a população brasileira tem o que chama de uma “enorme conivência” com o brutal. “O Brasil tem, em média, quatro tentativas de linchamento por dia, altos índices de homicídios, de estupro, de violência doméstica”, lembra.

A não superação dessa cultura e sua perpetuação é, para Sottili, uma política de manutenção de privilégios: ao se convencionar que só alguns sujeitos estão protegidos no arcabouço dos direitos, recebe-se carta branca para explorar, ignorar e até mesmo eliminar quem não se encaixa em determinado perfil.

“Você tem uma parcela minúscula da população que é detentora de recursos: branca, de classe média alta. Ela se vê enquanto parâmetro de qualificação, e quer viver em um sistema formado por pessoas iguais. É essa mesma parcela que detém os meios para a manutenção desta sociedade de exclusão, pautada na cultura da violência, que se expressa por meio do Estado, da polícia, do exército e da mídia.”

Razões que colocam mulheres, negros, indígenas e populações LGBT na liderança dos índices enquanto vítimas de violência e falta de acesso aos direitos fundamentais.

jovens protestam no centro de curitiba
Manifestação em Curitiba em defesa do direitos das mulheres / Crédito Melito Júnior

Por uma retórica de direitos humanos

Em período eleitoral, a apropriação da expressão “direitos humanos” tende a se intensificar, inclusive nas propostas políticas. Se há candidatos que defendem abertamente um Estado de afirmação de direitos, sejam eles sociais, individuais ou coletivos, há outros que defendem a manutenção dos direitos humanos somente na questão da segurança ou ainda que políticas públicas que garantem os direitos humanos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), devem acabar por serem “um estímulo à vagabundagem”.

A retórica dos direitos humanos não foi bem trabalhada no processo de redemocratização do Brasil, nem pelas pautas conservadoras nem pelas progressistas

Além da perpetuação da cultura da violência, San acredita que opiniões como estas ainda existem porque a retórica dos direitos humanos não foi bem trabalhada no processo de redemocratização do Brasil, nem pelas pautas conservadoras nem pelas progressistas. “Não se endossou direitos humanos no Brasil como uma linguagem de todos. E isso é explicado pela retórica tanto dos movimentos de esquerda quanto de direita do Brasil, que não tiveram muito carinho pelas liberdades civis. E como as liberdades civis estão no coração dos direitos humanos, isso gerou consequências.”

Isto também explica, segundo San, por que discursos e campanhas conservadoras estão passando, nos últimos anos, por um período eficaz. “A retórica é uma capacidade de falar que manipula a realidade e pode até transvestir inverdade de verdade. E o discurso da direita brasileira está passando por um momento em que consegue dizer as coisas mais absurdas do ponto de vista da igualdade humana, fazendo-o de maneira crível. O candidato Jair Bolsonaro (PSL) é um exemplo: ele tem enorme carisma e retórica, consegue manipular direitos humanos apenas no sentido de defesa da segurança e, para isso, manipula uma série de preconceitos latentes em toda a sociedade brasileira, como o racismo, a homofobia e o sexismo.”

Para reverter esse quadro, a especialista acredita ser necessário fazer o caminho inverso, isto é, que essa retórica seja recuperada pelas pautas mais progressistas e que consiga superar matrizes ideológicas.

“Quem de fato defende direitos humanos no Brasil precisa conseguir dar apelo retórico para a ideia de igualdade de direito. É preciso perguntar para a população: você acha que as mulheres são inferiores aos homens, que os negros são inferiores aos brancos, que os direitos dessas populações à moradia, à educação, à saúde podem ser violados? Não somos uma população de pessoas horríveis, mas precisamos pensar em como colocar isso em uma roupagem sedutora, que faça o sujeito pensar: eu quero votar em um candidato que defenda os direitos humanos e não somente um contra a corrupção.”

 

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