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publicado dia 26 de novembro de 2018

O Bem Viver: alternativas indígenas para se pensar a vida em comunidade

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Entre os muitos saberes dos povos originários andinos há o termo makipurarina: ele significa fazer um trabalho que beneficie toda comunidade. Atividades como a construção de casas ou de lavoura consolidam laços comunitários, e devem ser feitas não só com o próprio território, mas também os vizinhos.

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Essa prática de organização social encerra em si uma força catártica: são mais de quinhentos anos resistindo ao extermínio. Para o pensador e economista equatoriano Alberto Acosta, há nessa sobrevivência centenária não somente um mecanismo de defesa, mas sabedorias sofisticadas e alternativas para as crises ecológicas, sociais e políticas que atingem todo o mundo.

Essas e outras práxis de povos originários, marginalizados e periféricos da América Latina e de territórios emergentes compõem a essência da filosofia do Bem Viver. “A vida de um ser humano em harmonia consigo mesmo, com o outro e com a natureza”, sistematiza o pesquisador, também autor do livro “Bem Viver: Uma oportunidade de imaginar outros mundos”, lançado no Brasil pela Editora Elefante em 2016.

Ulrich Brand, professor de relações políticas da Universidade de Viena e parceiro de trabalho de anos de Acosta, complementa: “O Bem Viver é um termo epistêmico e político: qual seriam as condições de vida sem ter que viver à custa dos outros? E à custo da natureza? Como dentro desse marco a nível individual e espiritual é possível organizar coletivamente o transporte, como vivemos e o que comemos?”

Ambos os pesquisadores estiveram no Brasil em novembro para o lançamento do livro escrito em conjunto “Pós-extrativismo e decrescimento”, também pela Editora Elefante. Em entrevista ao Portal Aprendiz, os escritores se debruçam sobre a filosofia do Bem Viver e como ela pode se efetivar como alternativa não somente ao capitalismo, mas também à guinada ultraconservadora que afeta países como Brasil, Áustria e Estados Unidos.

lançamento do livro da editora elefante
Da esquerda para a direita, Alberto Acosta, Tadeu Breda, fundador e tradutor da Editora Elefante e Ulrich Brand/ Crédito: Editora Elefante

Portal Aprendiz: Os indígenas Yanomami, da região amazônica, costumam dizer que para eles o fim do mundo já chegou. Ainda assim mantêm práticas elaboradas de organização social e convívio com a natureza. Faz sentido procurar nestes povos alternativas para a construção de novos mundos?

Alberto Acosta: Por que começamos a recuperar pensamentos, valores e experiências  de uma outra forma organizada da vida na América Latina e no mundo? Eu apontaria que isso se deve a várias razões. Por um lado, os graves problemas que a humanidade atravessa. Estamos frente a uma sorte de crises civilizatórias que têm muitas facetas: uma é a ecológica. Outras, a social e econômica. Outra é a política, ou se quiser, a ética. A humanidade está numa encruzilhada. Cada vez há mais consciência de que temos que mudar para que ela não entre em um caminho sem saída, produzindo um espécie de suicídio coletivo. Se cobiça esse caminho reflexivo tanto no norte quanto no sul global.

A América Latina em particular, ao fim dos anos 1990, se viu frente à força dos problemas derivados das políticas neoliberalistas. As ideias desenvolvimentistas entraram em crise, o que nos obrigou a buscar alternativas. Primeiro, se pensou que eram contra o neoliberalismo, depois contra o capitalismo. Essas alternativas estão em povos originários, em comunidades.

Na mesma época, os movimentos indígenas emergem com muita força em vários países latino-americanos, como sujeitos e não mais como objetos da política. São atores fundamentais em processos de democratização no Equador e na Bolívia, em particular. Não não só sujeitos, mas também portadores de alternativas de sua própria forma de ver o mundo.

Nesse cenário se conjugam visões e propostas que vão levar a uma série de processos constitucionais na Bolívia e no Equador. No Equador, por exemplo, foi constitucionalizado o Bem Viver, e isso se fez recuperando os saberes que as comunidades possuíam. É um ponto medular esse retorno.

Portal Aprendiz: Sabedorias ancestrais ou não eurocêntricos são pouco olhados, e quando são, são olhares estereotipados, trajando-os com ares de folclore ou misticismo. Como vocês enxergam isso?

Alberto: Há uma ambição folclórica sobre o mundo indígena. Mas antes dessa visão, houve uma imperial. Se devia superar essas “culturas atrasadas”. E essa foi a mensagem que começou com a colonização. O que eles queriam, além de recursos naturais, eram também levantar a bandeira da evangelização. “Nós somos os civilizados, vocês indígenas os selvagens, nós somos adiantados, vocês são atrasados”. Então dessa perspectiva se começou a combater e a marginalizar o pensamento ancestral. As culturas indígenas, que sofreram nas mãos dos conquistadores e que seguem sofrendo 500 anos resistem à colonização, inclusive às suas formas mais perversas. Só pensar que o significou para os Munduruku a construção de Belo Monte.

A visão folclórica e romântica do mundo indígena é completamente equivocada. O mundo indígena deve ser entendido desde suas realidades. São povos com larga memória e que podem enfrentar momentos de muita crise. São povos que nos oferecem opções diferentes de vida. Não para copiar, o que seria uma bobagem.

É relativamente mais fácil pensar em um Bem Viver em espaços rurais. Por que a comunidade rural, o camponês, o indígena, entende como se deve viver em harmonia com a natureza. Se a destroçam, não vão ter sua vida. Nas cidades, é mais complexo, mas há jeitos.

Ulrich: Em parte da Europa existe um questionamento muito interessante sobre o conhecimento europeu como universal ou superior. A crítica mais interessante vem justamente de outras experiências e conceitos de fora. Para citar um: Epistemologias do Sul do Boaventura de Souza Santos.

É importante reconhecer a diversidade mas também questionar o suposto da universalidade do saber dominante, reconhecendo as lutas concretas e epistêmicas que questionam os modos de produção de saber. Isso é o que vocês chamam na América Latina de conhecimento transdisciplinar, que tem como primeiro passo envolver outros atores no modo como entendemos e resolvemos problemas.

Te dou um exemplo: eu faço investigação empírica com sindicatos alemães e quais as perspectivas socioecológicas que nascem de suas lutas. E não se pode formular nunca as perguntas e problemáticas sem os sindicalistas, porque são eles que têm os objetivos emancipatórios acerca do mundo. Esse modo de produção de conhecimento é algo que aprendemos na América Latina, e isso é muito enriquecedor.

encontro de mulheres yanomami
Encontro de mulheres Yanomami / Crédito: Lucas Lima (Instituto Socioambiental)

Portal Aprendiz: Então, o que significa Bem Viver? Ele é um conjunto de experiências?

O Bem Viver (em espanhol, Buen Vivir, e em kíchwa, língua indígena da qual nasceu o conceito equatoriano do termo “sumake kawsay”) têm enorme sintonia com outras visões de mundo nos quais se procura estabelecer relações de equilíbrio, de harmonia com a natureza e com a comunidade. Por exemplo, a terminologia sul-africana Ubuntu: “Eu sou porque você é, você é porque eu sou, você eu somos”, ou as filosofias svadesh, swaraj e apargrama na Índia. Essa visão do comunitário é fundamental que se amplie não somente à sociedade humana mas também à sociedade natural.

Não se deve idealizá-las, ou estabelecer um tipo de definição indiscutível. O Bem Viver é a vida de um ser humano em harmonia consigo mesmo. A vida em harmonia do ser humano consigo mesmo que tem que levar simultaneamente a vida em harmonia de todos os seres humanos. Um indivíduo vive em harmonia com todos os seres humanos, então se, resgata algo, uma chave fundamental: a comunidade. Somos indivíduos, sim, mas só somos indivíduos porque existe a comunidade.

Povos indígenas são povos com larga memória e que podem enfrentar momentos de muita crise. São povos que nos oferecem opções diferentes de vida.

Vem também à tona o tema da vida em harmonia do indivíduo em comunidades com a natureza. Somos natureza, e não estamos aí para dominá-la. Se abre uma porta para uma mudança civilizatória de visões antropocêntricas. Como se consegue isso? Construindo outro tipo de relação com a natureza. O mundo indígena, por exemplo, varia de relações espirituais, de solidariedade, reciprocidade, convivência pacífica, respeito mútuo para gerar confiança. Entre os seres humanos e os não humanos.

Ulrich: Para complementar, eu diria que o Bem Viver é um termo epistêmico e político. Para a maioria das pessoas, Bem Viver pode significar ter uma casa maior, mais viagens com avião, carne barata. O desafio é como o Bem Viver pode ser emancipatório. Quais seriam as condições de vida sem ter que viver ao custo da vida dos outros? E o custa da natureza? Esse seria o princípio. Como dentro desse marco a nível individual e espiritual se pode organizar coletivamente o transporte, como vivemos, o que comemos?

Portal Aprendiz: Alberto, você falou um pouco sobre a dificuldade de se pensar isso longe dos contextos rurais nas cidades. Ulrich, você trabalha isso justamente em espaços urbanizados. Vocês podem exemplificar?

Alberto: Há ações distintas nas comunidades com gente discutindo como fazer o Bem Viver em suas próprias cidades. Colônia, quarta cidade em população na Alemanha, realiza anualmente um festival do Bem Viver. Fecham um enorme espaço para mais de cem mil pessoas, e ali são feitas discussões sobre transporte, alimentação, segurança, saúde, buscando respostas coletivas. O Bem Viver, mais do que esse potencial das comunidades, é como uma semente que está frutificando em outras partes.

Ulrich: Existe de fato um grande perigo de se pensar o Bem Viver de forma abstrata ou para poucos, com uma vida com mais carne ou mais carros. Tivemos em Viena alguns congressos sobre o Bem Viver para todos. O que isso significa para uma sociedade tão rica quanto a austríaca, mas também também autoritária, tão excludente? Significa que é um germe, que pode crescer.

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Saberes de comunidades quilombolas podem ser inspiradores para práticas em diversos territórios / Crédito: Claudio Tavares (Instituto Socioambiental)

Portal Aprendiz: É possível dizer que o Bem Viver é uma ruptura não só com o capitalismo, mas também rejeita o socialismo?

Alberto: Se deve superar o antropocentrismo e pensar sob uma perspectiva biocêntrica. A vida digna como centro para humanos e para não humanos. Dessa perspectiva, o Bem Viver estaria questionando todas as visões que têm como lógica capitalista a acumulação permanente de bens materiais. Desde uma perspectiva capitalista até a socialista tradicional.

O Bem Viver também questiona propostas absolutamente estadocentristas. Porque o Bem Viver surge e deve consolidar-se desde o comunitário, não desde acima. Já vimos o que aconteceu na Bolívia e no Equador. Os dois países têm o Bem Viver constitucionalizados mas, na prática, o conteúdo se esvaziou. Se transformou em um instrumento de poder e uma ferramenta de propaganda.

Dentro do próprio capitalismo estão surgindo as alternativas. Temos que sair dessas visão monoculturais para visões pluriculturais. Como é possível que existam e convivam vários mundos simultaneamente? Você já viu com certeza o curso de um rio: ele vai se enriquecendo com os afluentes. Há muitas lutas que estão enriquecendo uma série de rios, porque não há só um. Pr exemplo, as lutas de resistência de comunidades contra as grandes mineradoras. Esse grande rio anti-extrativista leva alternativas de outros rios: o rio que tem que ver com a superação do desenvolvimentismo, o rio que tem a ver com a rigorosa e grande luta contra o patriarcado, a luta contra a colonização, a luta contra a destruição da natureza. Eles vão se enriquecendo e tudo isso conflui para um rio pluriverso.

*As fotos que ilustram essa matéria são do Instituto Socioambiental (ISA). 

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