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publicado dia 1 de abril de 2019

O Cais José Estelita e a crônica de (mais) uma morte anunciada

por

*Por Natália Miranda Vieira. Artigo publicado originalmente na revista vitruvius

Vivemos tempos nebulosos.

O domingo 24 de março de 2019 amanhece marcado pelas notícias do incêndio na favela do Cimento, zona leste de São Paulo, onde moravam cerca de 216 pessoas, entre as quais sessenta crianças (1). Incêndio ocorrido horas antes da reintegração de posse a ser executada pela polícia militar. Incêndio comemorado em buzinaço por parte da população paulista que passa no local no momento do acontecido. Estômago revirado.

A segunda-feira 25 de março de 2019 amanhece sombria para a cidade do Recife. A manchete que estampa vários jornais locais anuncia a autorização para a demolição dos Armazéns do Cais José Estelita para dar início à implementação do Projeto Novo Recife (2). Enquanto a população é pega de surpresa com a notícia veiculada nos jornais, os empresários já estão com todo o maquinário a postos e a demolição inicia imediatamente após o anúncio. Coração partido.

Sobre a autora: Natália Miranda Vieira-de-Araújo é doutora em Desenvolvimento Urbano, Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, Professora dos Programas de Pós Graduação em Desenvolvimento Urbano (UFPE) e Arquitetura e Urbanismo (UFRN). Membro do Icomos Brasil.

Novo? O vídeo desenvolvido como parte das ações do Movimento “Ocupe Estelita” intitulado “Recife, cidade roubada” (3), de 2014, inicia exatamente com a necessária problematização do termo empregado de forma sistemática nas transformações urbanas promovidas na cidade do Recife: “novo”. A simbologia deste ato fere fundo a alma de todos os envolvidos na luta pelo direito à cidade e pela preservação patrimonial, uma vez que, desde o Leilão, realizado em 2008 e questionado pelo Ministério Público, em que o terreno foi vendido a um grupo de construtoras, uma luta linda pelo direito à cidade e a discussão de que cidade queremos foi construída tendo como palco o Cais José Estelita através do movimento que ficou nacional e internacionalmente conhecido como “Ocupe Estelita” (4). O movimento tornou-se o símbolo da luta pelo direito à cidade e do entendimento de que, se não nos for dada a chance de discutir os projetos que serão implementados em nossa cidade, nós podemos exigir que tal discussão seja realizada. Em novembro de 2014, de passagem pelo Recife para o lançamento de seu livro mais recente, o geógrafo britânico David Harvey visitou a ocupação na área do Estelita e afirmou: “eu escrevo sobre direito à cidade, vocês o praticam” (5).

O patrimônio industrial e suas grandes áreas urbanas hoje ociosas representam um grande potencial enquanto espaço privilegiado para o desenvolvimento de projetos de requalificações urbanas com capacidade estruturante para a construção de uma cidade mais acolhedora, democrática e atenta ao valor de sua paisagem urbana historicamente construída. Em vez disso, o que se vê Brasil afora é o desperdício de grandes oportunidades como a que Recife possuía com a área do Cais José Estelita. Área inicialmente pertencente à União, com mais de 10 hectares, localizada em ponto estratégico da cidade no que diz respeito à sua inserção no coração histórico da cidade, de sua relação com a frente d’água, da relação com várias ocupações de baixa renda em seu entorno necessitando de espaço público de qualidade, entre tantos outros aspectos a serem destacados. Ao longo dos últimos dez anos, parte significativa da população recifense lutou para que essa oportunidade não fosse entregue a uma pequena parcela da população e que a cidade não visse sua paisagem cultural ser profunda e irremediavelmente alterada. O movimento “Ocupe Estelita” jamais será esquecido e segue como exemplo a ser seguido apesar das notícias arrasadoras de hoje.

 

Demolição do Cais Estelita
Vídeo de Jonathan Lima / Movimento Coque (R)existe

Nesse processo, vale destacar o absurdo que significa o arquivamento do processo de tombamento da área por parte do Iphan, no ano de 2016, em uma discussão bastante controversa, uma vez que o estudo havia sido criteriosamente desenvolvido por especialistas da área do patrimônio sob sólidos argumentos sobre a importância da área para a preservação de edificações do conjunto do antigo Pátio Ferroviário das Cinco Pontas e da paisagem da área central recifense, no bairro de São José. Não precisa nem ser especialista em preservação para entender/perceber o prejuízo à paisagem que o projeto representa. As “torres gêmeas” recifenses construídas no coração do bairro contíguo, o Bairro do Recife, em outro conturbado processo de aprovação, são o experimento vivo das consequências desastrosas que este tipo de projeto imprime à paisagem da área central.

Como esse arquivamento conseguiu ser aprovado pelo Conselho Consultivo do Iphan é algo a ser desvendado. A discussão realizada por ocasião do 11° Seminário Docomomo_BR ocorrido em Recife em abril de 2016, entre Andrey Schlee – diretor do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan –, membros do conselho consultivo presentes ao seminário, e a especialista Cecília Rodrigues Santos – uma das responsáveis pela instrução do processo de tombamento e membros do Movimento “Ocupe Estelita” – deixou evidente a falta de clareza nesse processo de arquivamento. Vale destacar que o arquivamento foi “justificado” pela necessidade de um maior estudo sobre a área enquanto “paisagem cultural”. Tal estudo não se concretizou e estamos assistindo hoje à demolição da área com poucas armas para seguir resistindo. O Iphan e, mais especificamente, os que argumentaram pelo arquivamento de tal processo devem se sentir corresponsáveis pela demolição em curso.

A luta continua e o Movimento “Ocupe Estelita” tenta, de imediato, mobilizar a população para tentativa de evitar o desastre em curso. A luta é todo dia e não se resume ao Estelita (6). A desesperança e cansaço querem tomar conta, mas essa não é uma possibilidade que podemos nos dar ao luxo. Enquanto isso, na zona sul da cidade, no metro quadrado mais caro e cobiçado no coração de Boa Viagem, outra discussão importante se desenrola com a desocupação em curso do edifício Holiday, patrimônio moderno em precário estado de conservação ocupado por uma população de baixa renda que fere a paisagem elitizada da área (7). Muita coisa em jogo nessa cena. E a cidade segue sendo construída. Que cidade queremos? Entre incêndios, desocupações e demolições, sinto-me imersa num momento pra lá de obscuro onde nem o patrimônio construído e muito menos as pessoas tem tido algum valor para as decisões que são tomadas.

cais josé estelita demolição
Demolição do Cais Estelita / Crédito: Jonathan Lima [Movimento Coque (R)existe]

*Publicação original do artigo: VIEIRA, Natália Miranda. O Cais José Estelita e a crônica de (mais) uma morte anunciada. Será esse o triste fim de um símbolo de resistência e luta pelo direito à cidade? Minha Cidade, São Paulo, ano 19, n. 224.07, Vitruvius, mar. 2019 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/19.224/7307>. 

Notas

1
Incêndio atinge favela no entorno do Viaduto Bresser; reintegração de posse estava marcada para este domingo. TV Globo/G1SP, São Paulo, 23 mar. 2019 <https://glo.bo/2HTJGi6>; ‘Cidadãos de bem’ comemoram incêndio em favela de SP. 247, São Paulo, 24 mar. 2019 <https://bit.ly/2YpoMwP>.

2
BRAGA, João. Prefeitura autoriza demolição de imóveis para o projeto Novo Recife Autorização foi dada nesta segunda-feira pelo secretário. Recife, Portal FolhaPE, 25 mar. 2019 <https://bit.ly/2Ttlq8p>; JC ONLINE. Demolição de galpões no Cais José Estelita é retomada Para a área está prevista a implantação do Projeto Novo Recife, que inclui a construção de torres ao longo do cais. Recife, JC Online, 25 mar. 2019 <https://bit.ly/2Fv7plw>; SANTOS, Maria Carolina. Prefeitura do Recife concede licença e começa demolição do Cais José Estelita. Marco Zero, Recife, 25 mar. 2019 <https://bit.ly/2TXIm4T>.

3
OCUPE ESTELITA, Movimento. Contra o Projeto Novo Recife, a favor do Projeto Recife! Assistam ao filme Recife, cidade roubada. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 172.03, Vitruvius, nov. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.172/5340>.

4
GHIONE, Roberto. Ocupe Estelita. Idade Média, ontem e hoje. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 167.02, Vitruvius, jun. 2014 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/14.167/5193>; NÓBREGA, Maria de Lourdes Carneiro da Cunha; TRINDADE, Isabella Leite; CÂMARA, Andrea Dornelas. #resisteestelita. Pelo direito a preservação do cais. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 178.04, Vitruvius, maio 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.178/5507>.

5
JC ONLINE. David Harvey faz palestra sobre a economia política da urbanização Um dos maiores pensadores do marxismo atual, o geógrafo britânico vem ao Recife nesta segunda (17/11). JC Online, Recife, 17 nov. 2014 <https://bit.ly/2CD4Q0u>.

6
CANOFRE, Fernanda. De Recife a Porto Alegre: mesa redonda debate como o ativismo urbano pode salvar as cidades. Sul 21, Porto Alegre, 23 jul. 2015 <https://bit.ly/2FrLAn7>.

7
CARVALHO, Bianka; TORRES, Camila. No último dia para desocupar o Holiday, parte dos moradores afirma que não pretende sair. Recife, G1 Pernambuco/TV Globo, 20 mar. 2019 <https://glo.bo/2JHc0Xh>; CORREIA, Mariama. Desocupação do edifício Holiday, quem se responsabiliza? Marco Zero, Recife, 19/03/2019  <https://bit.ly/2ugGyVq>.

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