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publicado dia 4 de abril de 2019

Câmara Cascudo e o folclore como ciência do povo

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Câmara Cascudo (1898-1986) escrevia à noite. Nas horas em que o urutau canta e os lobisomens vagueiam, o pesquisador potiguar se retirava para um quarto em sua casa em Natal (RN) e punha-se a escrever sobre a cultura popular brasileira – não só a que devorava avidamente nos livros, mas também a que ouvia da rendeira e do pescador com quem conversara por toda tarde.

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Autor de obras ímpares como o Dicionário do Folclore Brasileiro (1954) ou a História da Alimentação no Brasil (1967/1968), Luís da Câmara Cascudo nasceu e viveu na capital potiguar. Tentou fazer medicina, formou-se em direito, financiou-se a maior parte da vida como professor.

Mas foi na documentação e no apreço pelas pessoas, hábitos e culturas brasileiras onde Cascudo debruçou sua infindável memória e prolífica capacidade de escrita.

“Ele foi um dos precursores da pesquisa de campo no Brasil, a picada do mato, como ele gostava de dizer”, conta Daliana Cascudo Roberti Leite, neta do escritor e presidenta do Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, espaço que resguarda e promove o acervo do pesquisador, funcionando na casa onde ele sempre morou. “Imagine na década de 20 um professor de História falando sobre bumba-meu-boi e boitatá? Um colega até pediu que vovô fosse demitido por falar coisas dessa natureza.”

Para o pesquisador Marcos Antonio de Moraes, professor de literatura brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Câmara Cascudo reconhecia no folclore brasileiro a manifestação mais rica e viva do condensado de culturas que formam o país.

“Folclore é uma expressão que intelectuais como Câmara Cascudo valorizaram muito, porque sempre a pensaram como uma ciência do povo, ciência que pudesse fornecer as bases, as camadas daquilo que nós expressamos enquanto o que nos diferencia dos outros. Somos resultados desse processo que não é puro, oriundo de várias fontes que se mesclaram e passaram por adaptações do meio.”

festa bumba-meu-boi
Câmara Cascudo sempre olhou para as festas populares. Na foto, Bumba-meu-Boi no Maranhão / Crédito: Ministério do Turismo

Ouvir a rendeira, pesquisar o mangue

Para o “homem-dicionário”, a pesquisa e o compartilhamento dela ajudavam a entender e proteger as culturas populares. Essa pesquisa, entretanto, não era somente erudita. O que ele queria saber não estava confinado aos livros que lia e escrevia. Era precisa cruzar a soleira da porta, atravessar o quintal, ver a vida girar.

“Quando Cascudo começou a estudá-las, coisas consideradas do povo eram de menos valia. Não eram dignas de um olhar acadêmico, de um debruçar estudioso.  Mesmo assim vovô fez e foi pioneiro. Foi ao mangue, escreveu um livro sobre jangada, entrevistou quem a fazia e quem a usava”, relembra Daliana.

Jorge Amado sobre Câmara Cascudo: “Tão jovem aos setenta anos, Mestre Luís da Câmara Cascudo cada dia redescobre o Brasil num dito popular, numa lenda, na realidade de um instante mágico, na mesa do almoço ante um prato de nossa culinária, na face do homem e na medida de uma existência vivida toda ela em função da cultura, da cultura brasileira. Eis um mestre de Brasil, Cascudo”.

“Quando se investiga os estudos de Cascudo sobre narrativas populares, há sempre coleta de informações com quem ele conhecia, com quem convivia”, completa  Marcos. “Tudo o que ele reuniu continua vivo e se expressa na nossa realidade até hoje.”

Entre os 200 publicações e mais de 8 mil páginas escritas por Cascudo, o Dicionário do Folclore Brasileiro é provavelmente a maior expressão de sua maestria investigativa. O calhamaço contém milhares de verbetes sobre alimentação, religião, animais mitológicos, objetos e crenças do feitio popular.

Entre descrições sobre oferendas para a orixá Oxum, avistamentos de fantasmas e jeitos de comer mandioca, Marcos aponta que há também ali o Cascudo que enxergava a riqueza brasileira somente possível por conta das culturas africanas, indígenas e europeias que a construíram.

“Para Cascudo, folclore é uma expressão universal e é a nossa própria realidade que demanda construções nessa expressão. Há sempre um arquétipo: existe aqui o lobisomem, mas também na Europa, e cada país construiu o imaginário de sua forma.”

homem prepara mandioca
A alimentação e o jeito brasileiro de se preparar alimentos como a mandioca também foi um dos assuntos sobre qual Câmara Cascudo se debruçou / Crédito: Documentário “História da Alimentação do Brasil”, do Canal Brasil

Pesquisa e encontro com Mário de Andrade

Não é de se espantar que o cuidado de Câmara Cascudo com a cultura brasileira tenha chamado a atenção de pares que também por ela se interessavam. Muitas amizades foram travadas, engrossando o caldo de olhares para a cultura popular. Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiróz, Dina Dreyfus, Lévi-Strauss e tantos outros figuraram entre os que foram aprender com ele.

“Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivência dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço” – Câmara Cascudo

Sua pesquisa foi especialmente sensível para o escritor Mário de Andrade. O “turista aprendiz” travou intensa amizade e correspondência com Cascudo, indo até o Nordeste após ler um texto sobre lobisomens. Cascudo compartilhou com Mário saberes que influenciaram diretamente a criação da obra “Macunaíma” (1928).

O legado dos escritos e pesquisas de ambos é, para Marcos, mostrar que não se deve piscar os olhos: a cultura está em todos lugares, brota na diversidade e precisa ser estudada acadêmica mas também afetuosamente.

“Eu não tenho dúvidas de que se hoje ele estivessem vivos estariam olhando para os slams. Estariam olhando para a cultura viva, a postura engajada, para o contraponto a uma realidade homogênea e que impede a criação. Estariam lá, e veriam e poderiam pensar o Brasil.”

 

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