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publicado dia 15 de abril de 2019

O direito à cidade psíquica: como o espaço público se conecta à saúde mental?

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A rotina da psicóloga e coordenadora do CAPS* (Centro de Atenção Psicossocial) Antoniella Santos Vieira é de escuta e caminhada: durante o dia, ela ouve histórias de pessoas em situação de rua, pessoas com problemas com álcool e drogas, entre outras questões. É esse território desafiador – metade urbano, metade rural – que ela percorre, mostrando que o centro oferece diversos serviços – como ioga e pilates – além de acompanhamento psicológico.

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“O trabalho que fazemos é de base comunitária e territorial. Com a oferta de recursos humanos disponíveis, pensamos estratégias para articular o território em suas necessidade e também suas particularidades”, declara a coordenadora, que tem oito anos de experiência na gestão.

Serviço de saúde vinculado ao SUS (Sistema Unificado de Saúde), o CAPS oferece uma gama de serviços que vão desde assistência social, acompanhamento psicológico até atividades terapêuticas. As mais de 2.400 unidades disponíveis gratuitamente no Brasil são fruto de anos de luta de trabalhadores de saúde contra os manicômios, estruturas de internação violenta que por muito foram a única alternativa para tratamentos de transtornos psíquicos.

Só é possível acesso amplo a serviços através de políticas públicas especificamente voltadas para direitos sociais. Saúde é um deles e a saúde mental deve fazer parte desse pensamento

Contudo, ainda persiste a disputa de narrativa entre uma saúde mental que considere o sujeito e seu território e a internação. Em 2017, o Ministério da Saúde publicou a portaria nº3588, aumentando leitos psiquiátricos e cobrando mais internações para recebimento de verbas, indo na contramão do movimento de desospitalização pelo o qual o país é mundialmente conhecido.

E nesta quinta-feira (11 de abril), o presidente Jair Bolsonaro anunciou uma nova Política Nacional Contra Drogas, que prevê estímulo à abstinência e não à redução de danos, abordagem adotada pelo sistema.

“No Brasil, de tamanha desigualdade entre classes sociais, só é possível acesso amplo a serviços através de políticas públicas especificamente voltadas para direitos sociais. Saúde é um deles e a saúde mental deve fazer parte desse pensamento. O que foi construído com muito esforço coletivo desde o processo de redemocratização está em risco”, aponta Daniel Guimarães Tertschitsch, psicanalista e um dos criadores da Clínica Pública de Psicanálise, espaço gratuito de atendimento na Vila Itororó, em São Paulo.

clínica pública de psicanálise e yoga
Saúde mental integra práticas de autoconhecimento como o ioga / Crédito: Clínica Pública de Psicanálise

Saúde mental e integral do sujeito

O primeiro CAPS foi criado em 1986, o que poderia dar a entender que a luta por uma saúde psíquica menos agressiva e baseada no sujeito e suas relações é recente. Mas Daniel recorda que a prática de olhar para si sempre aconteceu em outros espaços.

“Aí estão os terreiros e as igrejas como exemplos históricos de espaços sociais e culturais onde a questão da saúde do espírito é levada em consideração. Vale lembrar que uma das palavras usadas por Freud para designar o psíquico é seele, que do alemão pode ser traduzido em português por alma/espírito. É importante recuperar essas práticas, para não mencionar outras, como experiências coletivas de organização comunitária que proporcionam redes de apoio.”

Clínica Pública de Psicanálise

Os atendimentos no plantão são individuais, gratuitos, para todas as idades e têm a forma de uma conversa. A duração aproximada é de 50 minutos. São recebidas ao menos quatro pessoas por sábado, por ordem de chegada, às 10h, 11h, 12h30 e 13h30 (distribuição de senhas a partir de 9h). Mais informações: [email protected]

É neste conceito de intersetorialidade e ação comunitária que o CAPS onde Antoniella trabalha se estrutura. “É um centro de convivência que oferece inúmeras possibilidade de cuidar do outro de uma outra forma, com ioga, pilates, roda de conversa. Óbvio que se o sofrimento se agravar recorre-se à “psi”, mas não é só isso. Não pode ser a única alternativa medicalizar a vida, o cotidiano e a cidade.”

O CAPS da atuação de Antoniella é um Caps Álcool e Drogas (CAPSad). Mas antes de tratar a adição, é a história do sujeito que é levada em conta. Todo tratamento começa com o diálogo e reconhecimento da particularidade do indivíduo.

“Só tratar o sintoma é uma visão de doença e o que a gente busca é a promoção da saúde. Quando a pessoa chega aqui e diz ‘estou com problema de ansiedade’, vamos antes entender qual é sua história, o que está acontecendo em sua vida, para aí pensarmos juntos qual tipo de serviço pode ser oferecido.”

Fazer do encontro uma prática e também possibilidade de cura é um dos princípios que orienta a Clínica Pública de Psicanálise. Criada em 2016, ela reúne psicanalistas e artistas pela promoção do atendimento psíquico gratuito e seu estreitamento com o espaço público.

“Essa relação menos vertical é, a meu ver, própria da psicanálise. O analista importa, e muito, mas não é ele o detentor do saber. A dupla analista-analisando ou analistas-grupo constroem uma relação a partir do que o analisando ou o grupo trazem para esse encontro que se transforma numa história.”

A hipótese da cidade psíquica

Nas muitas experiências que acontecem dentro da Clínica Pública de Psicanálise e no CAPS, tanto para Daniel quanto para Antoniella é clara a relação entre saúde mental e direito à cidade. É preciso ter acesso à cultura, à mobilidade, à educação e a outros direitos básicos para o desenvolvimento de uma psique saudável.

duas pessoas conversando na rua
As relações que se estabelecem na cidade são fundamentais para a a saúde mental / Crédito: Clínica Pública de Psicanálise

Daniel, que já teve forte participação em movimentos pelo direito à cidade como o Movimento Passe Livre (MPL), percebeu que pessoas com pouca mobilidade e pouco acesso ao que a cidade tem a oferecer padecem do empobrecimento do repertório de pensamento e pouca possibilidade de se deslocar na imaginação ou criar novos vínculos:

“A hipótese, então, é que a possibilidade de maiores deslocamentos físicos e, ainda melhor, dos desejos, não apenas o trajeto trabalho-casa, pode ajudar bastante na ampliação dessas referências interiorizadas e, consequentemente, em mais possibilidades de saúde psíquica. A luta pelo direito à cidade seria, portanto, também pelo direito à saúde psíquica.”

Essa relação menos vertical é própria da psicanálise. O analista importa, e muito, mas não é ele o detentor do saber

Até nos casos mais graves de dependência química ou de abandono social, Antoniella também enxerga a livre circulação e confiança na autonomia do sujeito como imprescindíveis em qualquer processo de cura psíquica. “É um serviço que acompanha a vida da pessoa, não seu cárcere. As pessoas devem ter livre trânsito, caminhar pela vida e fazer suas próprias escolhas diante da saúde ou da doença. Elas precisam circular.”

O psicanalista ainda complementa: “Já vivi muitas experiências de atendimento fora do consultório nas quais o deslocamentos pela cidade, em boa companhia, tinham enorme efeito na passagem da pessoa para a condição de sujeito. Ela ali observava as coisas, via novas paisagens, despertava novas fagulhas, reconhecia desejos próprios e assim por diante. Por questões políticas e econômicas da nossa sociedade de classes, essa não é uma possibilidade para a maioria da população.”

Daniel ainda é ferrenho na defesa da força e da ampliação das políticas duramente conquistadas. “O alcance das políticas do SUS e das formas de atenção psicossocial foi muito grande. Não será fácil acabar com tudo da noite para o dia. A memória é fresca e a saúde é inegociável. Não é negócio. Aposto que poderá ser um grande aglutinador de forças e interesses solidários para a reconstrução ou a construção de uma nova forma de sociedade ainda mais democrática do que a que tivemos nas últimas duas décadas”, arremata.

 *O nome do CAPS foi preservado a pedida da entrevistada.

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