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publicado dia 7 de fevereiro de 2020

O direito de viver plenamente o espaço urbano

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O direito de viver plenamente o espac?o urbano e todas as possibilidades que ele pode oferecer sempre foi uma realidade distante para a grande maioria dos brasileiros. Nos u?ltimos tempos, contudo, parece que estamos cada vez nos afastando mais desta realidade. A sensac?a?o e? de que todos os dias presenciamos mais ameac?as ao direito a? cidade da populac?a?o, de situac?o?es muito ba?sicas, como o direito de ir e vir em Sa?o Paulo, ate? dimenso?es simbo?licas de possibilidade de presenc?a da populac?a?o pobre em bairros ricos, como em Salvador. E? preciso falar dessas ameac?as a?s claras e enuncia?-las como tal (as palavras te?m forc?a!), mas tambe?m pensar possibilidades de enfrentamento e resiste?ncia poli?tica. O que esta? no horizonte nesse ini?cio de 2020?

Para quem segue de perto os acontecimentos relacionadas a poli?ticas urbanas, foi impactante a repressa?o a olho nu e diante das ca?meras promovida pela Poli?cia Militar de Sa?o Paulo ao protesto organizado pelo Movimento Passe Livre contra o aumento da passagem, realizado no dia 16 de janeiro na regia?o central. Por mais que especialistas fac?am as contas e contestem a necessidade de aumento da passagem, a Prefeitura de Sa?o Paulo promove mais um aumento de tarifa. Se para as classes altas o aumento de R$ 0,10 pode parecer insignificante, o impacto para fami?lias de baixa renda e? real e significativo. Lutando para fechar as contas no final do me?s em uma economia que exclui das relac?o?es formais de trabalho uma parcela considera?vel da populac?a?o, uma fami?lia de 4 pessoas, cada uma com apenas um deslocamento em dias u?teis, tera? que escolher que despesa de R$ 16,00 sera? cortada para acomodar o impacto do aumento. Sera? na alimentac?a?o? No reme?dio? No material escolar?

Isso apenas para falar no impacto econo?mico de curto prazo, quando sabemos que o impacto promovido pela imobilidade na vida da populac?a?o e? muito maior. Em cidades segregadas e desiguais como Sa?o Paulo – em que o acesso a oportunidades de trabalho, gerac?a?o de renda e a servic?os e equipamentos pu?blicos esta? concentrada em algumas regio?es do munici?pio – o aumento da passagem significa na pra?tica a imobilizac?a?o da vida das pessoas, o impedimento de seu desenvolvimento. Implica em pensar duas vezes se vale a pena comparecer a?quela entrevista de trabalho, em questionar se o movimento do dia no come?rcio informal do Centro compensara? o gasto de deslocamento.

Ha? estudos que comprovam isso. Em Sa?o Paulo, “a quantidade de empregos acessi?veis pelos 10% mais ricos da populac?a?o (…) e? mais que nove vezes maior que o nu?mero de empregos acessi?veis por todos 40% mais pobres”. Como a pro?pria pesquisa conclui, se na?o e? possi?vel num curto peri?odo de tempo que seja reequacionada a concentrac?a?o espacial das oportunidades de emprego, o mi?nimo a ser feito enquanto poli?tica e? promover melhorias nas condic?o?es de transporte da populac?a?o de baixa renda.

Uma reivindicac?a?o como a do MPL, portanto, e? mais do que justa: e? necessa?ria. Suas manifestac?o?es, no entanto, sa?o duramente reprimidas. Por que a contestac?a?o a um aumento de R$ 0,10 gera uma reac?a?o ta?o desproporcional por parte do aparelho repressor do estado? A ac?a?o da Poli?cia Militar na?o trata de apenas “conter” ou “manter a ordem”, mas deliberadamente de violentar os manifestantes, como mostram as cenas de agressa?o praticadas contra a militante Andreza Delgado no dia 16. Uma ac?a?o violenta, miso?gina, repressora e, contudo, nada inovadora, se lembrarmos que justamente esse tipo de ac?a?o por parte da PM foi uma das fai?scas que incendiou as manifestac?o?es de junho de 2013.

Se toda a viole?ncia praticada contra os manifestantes e? ilegal e imoral, o significado desta repressa?o ao movimento e? ainda mais perverso: o estado na?o aceita a mobilizac?a?o daqueles que na?o se conformam com o lugar reservado aos pobres pela sociedade – “lugar” pensado aqui tanto metaforicamente quanto literalmente. A insubordinac?a?o a? ordem urbana que promove a segregac?a?o racial, econo?mica e social em nossas cidades e? inaceita?vel a?quelas instituic?o?es que buscam implementar essa ordem.

O projeto poli?tico que pode ser entrevisto nessa repressa?o e? o mesmo que o governo estadual da Bahia busca reforc?ar, por exemplo, com o fechamento do Cole?gio Estadual Odorico Tavares, em Salvador. Localizado no Corredor da Vito?ria, a?rea de classe alta da cidade, o cole?gio sera? fechado para que o governo estadual possa leiloar seu terreno a algum eventual empreendimento de luxo. Sob o argumento de que o valor obtido com a venda do terreno pode subsidiar a abertura de um nu?mero maior de cole?gios e vagas, a mensagem que o governo passa e?, na realidade, de que pobres na?o devem circular por a?reas ricas.

Como Luciana Brito nos conta, nunca foi de fato fa?cil a circulac?a?o na regia?o para quem era pobre – o uniforme do cole?gio era o salvoconduto que permitia isso. Mesmo assim, circular na regia?o foi extremamente importante para sua formac?a?o, pois “ir para a escola significava entrar em outro mundo. Era o mundo das artes, do cinema, das bibliotecas, a Salvador do centro, perto de centro histo?rico, enfim, a Salvador “de verdade”. Contudo, essa Salvador ficava cercada por uma barreira branca. Ir para a escola, todos os dias, significava atravessar esse muro”. E foi para defender esse direito de atravessar o muro e tambe?m garantir sua educac?a?o que os estudantes ocuparam no dia 21de janeiro o cole?gio em protesto ao seu fechamento, sendo desocupado pela PM poucas horas depois.

E por que e? ta?o importante garantir que os estudantes possam atravessar esse muro? Porque, para questionar a realidade em que se vive, e? preciso saber que outra realidade e? possi?vel. Em outras palavras: conhecer a cidade dos ricos e? importante para que os pobres questionem a ordem urbana injusta, desigual e violenta imposta pelo estado. Pude testemunhar isso em va?rias ocasio?es em que participei de cursos promovidos para lideranc?as populares de favelas e bairros perife?ricos de Fortaleza, quando muitas dessas lideranc?as viam pela primeira vez, em nossas aulas de campo, como a classe alta morava, como ela se divertia na praia, como era diferente a infraestrutura da cidade. Vi nessas ocasio?es a luta pelo direito a? cidade se tornar concreta para eles diante de seus olhos, uma renovada energia para lutar por uma cidade justa, democra?tica, igualita?ria.

Se 2020 comec?ou com essas e va?rias outras ameac?as ao direito a? cidade, tambe?m esta? claro que sera? um ano de muita resiste?ncia e disputa em torno da apropriac?a?o das cidades brasileiras. E na?o custa lembrar: as eleic?o?es municipais ja? esta?o batendo a? porta.

 

*Artigo originalmente publicado no Archdaily Brasil. Rodrigo Faria G. Iacovini é advogado e doutor em planejamento urbano e regional pela FAUUSP, assessor do Instituto Pólis, coordenador executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e membro do coletivo LabLaje.

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