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publicado dia 10 de junho de 2020

Bianca Tavolari: Cidades acumulam problemas, mas também soluções para a pandemia

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No final do século 19, a febre amarela castigava a insalubre capital do Rio de Janeiro. O combate à epidemia alterou profundamente o desenho da cidade: ao mesmo tempo que o planejamento urbano se comprometia com saneamento básico e moradia digna nas áreas centrais, expulsava populações majoritariamente negras e pobres para as bordas da cidade. 

Duzentos anos depois, o planejamento urbano de cidades brasileiras é novamente tensionado por uma doença. A propagação do Covid-19 (novo coronavírus) se dá principalmente em territórios periféricos. Em São Paulo, bairros da franja da capital, como Brasilândia e Sapopemba, concentram o maior número de óbitos.

“Não é só desigualdade de renda, é desigualdade territorial”, define Bianca Tavolari, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e professora do Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa. “O lugar onde uma pessoa vive nas cidades brasileiras determina se ela estará mais propensa a doença, se terá acesso a hospitais e leitos e até mesmo o impacto na existência e estrutura de seu trabalho.” 

Porém, é também nos centros urbanos diversos e desiguais – onde vive hoje 84% da população do Brasil e 54% da população mundial – que surgem tecnologias sociais e iniciativas para mitigar a doença e projetar um futuro pós-pandêmico. 

Em entrevista ao Portal Aprendiz, Bianca explica como as relações entre doença e cidade forjaram os grandes espaços urbanos, e também de que jeito as cidades no Brasil e no mundo estão respondendo ao desafio pandêmico: 

Portal Aprendiz: Que relações se pode tecer entre cidades e epidemias? O que episódios ligados à doenças desencadearam no modo como vivemos em espaços urbanos?

Bianca Tavolari: As epidemias e cidades têm um longo histórico. As primeiras intervenções de planejamento urbano na virada do século XIX em cidades como Paris e Londres são pensadas para melhorar o saneamento, diminuir as aglomerações e incentivar a salubridade da moradia. As habitações começam a ter janelas, banheiros, um sistema de esgoto, e a arquitetura das cidades muda a partir de epidemias como a de febre amarela, varíola e outras doenças. Mas é importante frisar que, desde o princípio, além de pensar a erradicação de doenças, estas intervenções eram higienistas: a ideia era remover as populações pobres, não melhorar suas condições de vida. 

Na história de planejamento urbano se vê isso muito claramente nas intervenções do Barão de Haussmann, na Paris do século 19 (Bianca se refere às reformas estruturais e sanitárias que aconteceram na capital francesa e lhe deram a forma que ela tem até hoje, mas a custo da desapropriação forçada e da gentrificação). 

Mas não é preciso ir longe. O historiador Sidney Chalhoub, no livro Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial, conta como a demolição de um dos maiores cortiços do Rio de Janeiro, o Cabeça de Porco, operoupara erradicar a febre amarela. As pessoas expulsas de suas casas eram de uma classe trabalhadora, com um recorte racial evidente, porque os cortiços abrigavam pessoas antes escravizadas. Se antes, no Rio, pobres e ricos moravam juntos, ainda que em unidades habitacionais diferentes, quando os cortiços das áreas centrais começam a ser eliminados e as pessoas sobem os morros, se desenham padrões de segregação que perduram até hoje. 

foto antiga da região portuário do rio de janeiro
Região portuária do Rio de Janeiro
Vista da região portuária do Rio de Janeiro no século 19.
Arquivo Nacional. Fundo Floriano Peixoto

Portal Aprendiz: Como as cidades brasileiras estão respondendo hoje aos desafios da pandemia?

Bianca: A resposta do governo federal é uma política de morte. O Brasil está sem Ministro da Saúde há semanas, e o número de óbitos já ultrapassa os 35 mil. O presidente Jair Bolsonaro minimiza de maneira autoritária a doença, além de antagonizar com governadores e prefeitos, que tentavam fazer valer as medidas de isolamento social. 

Este antagonismo morreu, porque estados e municípios estão começando a afrouxar a quarentena, com propostas que são claramente concessões a setores do comércio. A abertura se dá no escuro, sem uma quantidade mínima de testes e com o número de infecções e óbitos crescendo. 

Em São Paulo, a cidade apresentou uma série de respostas à pandemia, em sua maioria ruins. Do ponto de vista da mobilidade, a primeira ação da prefeitura foi cortar linhas de ônibus devido à diminuição de demanda. Claro que as linhas que resistiram ficaram completamente lotadas, condenando a população a pegar um ônibus lotado em um momento no qual, por conta do menor número de passageiros, o distanciamento social poderia ser praticado. 

A segunda medida foi a implantação do mega rodízio. Foi uma política de mobilidade desastrosa: um profissional de saúde podia ir de carro para o trabalho em um dia, mas no outro teria que ir para o hospital em um transporte lotado. Trabalhadores de serviços essenciais, como supermercado e na farmácia, tiveram que replanejar todos seus trajetos diários.

Do ponto de vista habitacional, as medidas foram tardias, principalmente no que concerne à população em situação de rua. Aqui, faço uma ponte. Se voltarmos à discussão histórica sobre cidades e pandemias, o problema habitacional persistiu do Império até hoje. É na crise que percebemos o quanto a habitação é um problema central, porque a única medida factível que se tem para enfrentar a crise é ficar em casa, e quando a pessoa não tem acesso à moradia digna, ela está fadada a se contaminar. O poder público entende como aceitável a precariedade habitacional. A pandemia escancara isso.  

Portal Aprendiz: Em entrevista para o site CityLab, o professor de políticas urbanas Michele Acuto fala das cidades não só como centros de problema, mas também espaços de criação de soluções. O que você pensa sobre estaafirmação, olhando especificamente para as cidades brasileiras? 

Bianca: No Brasil, há um Estado omisso, mas uma sociedade civil que se organiza para que pessoas morram menos. É a força da organização comunitária. Favelas estão se auto organizando: em Paraisópolis, por exemplo, a comunidade nomeou chefes em cada rua para notificar casos de coronavírus; frentes de encaminhamento para hospitais e espaços de isolamento para pessoas idosas, além da sempre presente distribuição de cestas básicas. Isto tudo com o Estado jogando contra, com operações policiais matando adolescentes enquanto entregam cestas básicas. 

Outro exemplo do que as cidades podem produzir são protestos antirracistas que estão acontecendo nos últimos dias. Eles acontecem em grandes centros urbanos, onde pessoas se reúnem em espaços públicos para demonstrar força e colocam seus corpos em risco no meio de uma pandemia porque existe problemas de ruptura democrática. 

Os grandes centros urbanos são espaços por excelência de protesto. A própria ação de dizer ‘eu não aguento mais’, e fazerfrente à questão de ruptura democrática, tem a ver com uma cultura de cidadania que se dá nas cidades. São nas praças que as pessoas reivindicam seus direitos: as manifestações de junho de 2013, a Primavera Árabe, tudo acontece em espaços públicos. É uma gramática da resistência, e as cidades funcionam como grandes megafones que projetam ideias além. 

pessoas prendem faixa sobre profilaxia em comunidade no rio de janeiro
Comunidades periféricas tem se articulado para mitigar os efeitos da pandemia / Crédito: Fiocruz

Portal Aprendiz: Muitas medidas estão sendo tomadas nos espaço públicos em várias cidades pelo mundo para mitigar a pandemia. Você pode trazer alguns exemplos e falar da importância de que elas perdurem no pós-pandemia?

Bianca: Cidades como Bogotá (COL) e Berlim (GER) estão investindo em alargamento de calçadas, melhoria de vias para pedestres e ciclistas. As modalidades ativas podem ser uma grande aposta, agora que será preciso evitar aglomerações. 

Outro ponto interessante em termos de mobilidade é que, pela primeira vez, empresas de ônibus brasileiras estão propondo uma modalidade de remuneração que era uma reivindicação histórica dos movimentos de mobilidade como o Movimento Passe Livre, que não pagar pelo número de usuários, e sim por serviços e por ônibus circulando. Isso é uma entrada para discutir o modelo de remuneração, já defasado. 

Em questão de habitação, existem cidades no mundo olhando para a gentrificação e para o déficit habitacional. Cidades como Paris (FR) e Barcelona (ES) perceberam que, com a queda do turismo, o centro das cidades ficou vazio, porque parte das unidades era destinada ao turismo. Não está certo unidades muito bem localizadas vazias, e gente sem ter onde morar. Em Lisboa (PT), a prefeitura está alugando imóveis dos proprietários e sublocando a preços baixos para pessoas de baixa renda. É uma política de intermediação muito interessante. 

Temos aí uma disputa grande de como vai ser o futuro, se vamos conseguir falar sobre redução de emissão de CO² priorizando modalidades ativas de transporte, se vamos olhar com atenção as organizações comunitárias da sociedade civil. A construção do futuro pós-pandêmico vai se dar agora.

ciclista na frança
Políticas de mobilidade ativa podem se fortalecer na pandemia / Crédito: Unsplash
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