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publicado dia 11 de dezembro de 2020

Para ficar em casa, é preciso ter casa: despejos e reintegrações de posse se intensificam durante a pandemia

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Foi no mês de março, logo no início da pandemia, que o advogado Benedito Roberto Barbosa, há anos atuante no movimento de luta por moradia popular, começou a receber denúncias de ameaças de reintegração de posse em ocupações no interior de São Paulo.

“Tudo começa em Ribeirão Preto (SP), em uma comunidade chamada Cidade Locomotiva. Logo, recebemos denúncia de conflitos fundiários em Araras (SP), e uma situação de reintegração de posse em Piracicaba e São Bernardo”, recorda o advogado, que também atua no Centro Gaspar de Direitos Humanos.

Mesmo que a principal recomendação sanitária para conter o avanço da pandemia de Covid-19 seja ficar em casa, Estado, judiciário e proprietários já removeram cerca de sete mil famílias brasileiras de suas casas nos últimos meses, segundo levantamento da campanha Despejo Zero. 54 mil enfrentam a ameaça de remoção.

Segundo o Observatório de Remoções, grupo de pesquisação organizado por laboratórios de pesquisa de universidades brasileiras e que mapeia processos de remoção coletiva, o número de remoções dos últimos trimestres é maior do que no ano passado.

“Há um agravamento da crise habitacional e econômica que já vinha acontecendo, mas que se intensifica na pandemia”, explica a pesquisadora Talita Gonzales. “O resultado disso são inúmeras famílias que não conseguem pagar o aluguel e vão morar em algum tipo de ocupação. Quando dispara o número de ocupações, também dispara o número de pedidos de reintegração de posse”. 

Tão logo começaram as remoções, a sociedade civil se mobilizou para tentar barrá-las. No caso de São Paulo, Benedito conta que foram protocolados pedidos junto ao Tribunal de Justiça e a Comissão de Direitos Humanos para emissão de uma recomendação de suspensão dos processos de reintegração junto aos juízes. Os pedidos não foram acatados.

No âmbito legislativo, correm ao menos 20 projetos de lei para impedir despejos durante a pandemia. Um deles é o PL 1975/2020, de autoria de Natália Bonavides (PT-RN) e Rosa Neide (PT-MT), que propõe a suspensão de medidas que resultem em desejo enquanto o Brasil estiver sob estado de calamidade. Já o PL 1179/2020, que trata entre outros assuntos de contratos de locação, teve veto presidencial justamente no artigo que previa impedimento de despejo.

“Federalmente se tinha possibilidade de fazer moratórias de despejos e remoções, suspendendo todos”, denuncia Rodrigo Iacovini, urbanista e assessor do Instituto Pólis. “Mas essa coordenação não acontece porque a gestão federal é negacionista. E no congresso e em outras instâncias legislativas, como assembleias estaduais e municipais, há uma defesa da propriedade privada forte, mesmo que isso signifique colocar a vida de várias pessoas em risco.” 

pessoas tem que levar suas casas em reintegração de posse
São Paulo – Reintegração de posse de ocupação na zona leste da capital paulista, de propriedade da construtora Savoy Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil

Para ficar em casa é preciso ter casa 

Embora constitucionalmente assegurado, o direito à moradia no Brasil está longe de ser garantido. Estima-se um déficit habitacional de mais 7,9 milhões de moradias, segundo dados disponibilizados pela Campanha Despejo Zero. As ocupações são uma tentativa organizada de garantir esse direito, baseadas em conquistas como o usocapião

Se essa situação se agrava no contexto da pandemia, o amparo legal para resolvê-la é complexo. “Uma grande variedade de atores e esferas públicas lidam com o despejo e remoções. Mas é bom entender que a responsabilidade não é só do executivo, mas também do legislativo e do judiciário. Há despejos feitos por prefeituras em terrenos sem nenhum interesse potencialmente conflitivo que justifique a urgência, e juízes acatando essas decisões quando podiam barrá-las”, explica Iacovini

Segundo Irene Maestro, advogada de movimentos de luta por moradia, remoções administrativas figuram entre um dos tipos de despejos mais preocupantes. Nelas, a prefeitura desaloja uma ocupação em uma propriedade privada sem que o proprietário a tenha pedido de volta e sem ordem judicial. Elas têm acontecido com uso de guardas municipais, que só podem incidir sobre patrimônio público. Como exemplos, ela cita despejo violento em Curitiba (PR) e Cajamar (SP). 

Nas palavras do urbanista, há um “feixe de direitos humanos” que são violados quando uma remoção ou reintegração de posse acontece durante a pandemia: “Como uma pessoa se isola sem casa? Quando acontece uma desocupação, não só as famílias despejadas são colocadas em risco, mas também as pessoas que fazem o despejo e as que eventualmente podem abrigar as famílias.”

“É também a maior violação do direito à moradia. Se uma pessoa está em situação precária, ela ficará em uma mais precarizada. Ela se deslocará para espaços provavelmente insalubres, com mais gente morando em menos ambientes, isso se não for para espaços urbanos.”

 A violência é utilizada como estratégia para essas remoções, tanto no nível físico como no nível simbólico. “Muitas vezes a polícia entra, arranca as coisas, forçando uma violação da intimidade e privacidade. É à base de cassetete, gás de pimenta e agressão. Há também uma violência psíquica imensa”, continua o urbanista. “Há também a quebra de laços. O despejo é disruptivo na vida das famílias. Se quebra toda uma dinâmica familiar e social das pessoas que estão sendo removidas. Não só relações de afeto, mas da própria sobrevivência: uma prestação de serviço que acontece, uma família que cuida de uma criança enquanto outra está trabalhando. É o fim da rede de segurança social para essas famílias.”

O direito à educação de crianças e jovens também é violado. Muitas têm que trocar de escola se são obrigadas a se mudar, e podem perder o ano escolar por isso. Se seu novo lar não oferta condições de acesso à internet, sua aprendizagem fica defasada.  

“Ou o Estado comete as violações, ou ele se omite nos processos de violação não protegendo as famílias vulneráveis”, sentencia Barbosa. “O que também tem acontecido e é visível é um aumento da população em situação de rua. Muitas pessoas sendo despejadas e não tendo seu direito à vida digna garantido.

Sociedade civil tem se movimentado para barrar remoções e reintegrações de posse 

Para tentar sensibilizar as diversas esferas públicas brasileiras e acelerar projetos de tramitação de leis, movimentos da sociedade civil fizeram uma denúncia formal à ONU Direitos Humanos. A organização escreveu recomendações ao país, que ainda não foram discutidas no congresso. 

Os mesmos movimentos de luta por moradia, inclusive os ouvidos na matéria, criaram em junho a campanha Despejo Zero. “Essa campanha não só tem o objetivo de denunciar internacionalmente a situação dos despejos, mas também organizar lutas por soluções e evitar conflitos, pressionar tribunais de justiça, o Supremo Tribunal Federal e também evitar remoções administrativas”, relata Barbosa. 

Iacovini já consegue ver avanços de sensibilização frutos da campanha. “Já se encontram decisões judiciais que foram influenciadas pela campanha e suspenderam remoções baseados nos documentos que as organizações haviam enviado. Essas decisões podem inspirar outras, virando pragmáticas e tornando a questão da moradia, que é urgente, uma prioridade absoluta. Estamos compondo um corpo jurídico e político para ganhar força dentro do judiciário.”

O desafio é que essas decisões e a discussão continuem urgentes mesmo depois do fim da pandemia, como adiciona o urbanista: “Despejos e remoções sempre foram um problema no Brasil, mas a pandemia trouxe a questão para o centro do debate. A pauta de direito à moradia precisa sair desse contexto fortalecida.”

 

*Foto de capa por Isabelle Chagas, da Agência de Notícias da Favelas.

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